O DESTINO E O CARÁTER

Recentemente vi postagem no Facebook onde o filósofo polonês Zygmunt Bauman destaca a essência de seu livro “A Arte da Vida” para ressaltar dois fatores que dão forma à vida humana: o destino e o caráter.

Para tanto, define “destino” como aquilo nos afeta, sem nosso comando, muito menos sob nosso desejo. Nem por isso tem que ser obra ou manobra do Criador, tampouco resultante de arranjos siderais ou de artimanhas de extraterrestres. Geralmente decorre da própria evolução natural do universo, da terra, da biosfera, da comunidade, da sociedade, da família ou até do próximo. Vai desde a experiência de um cataclismo até prosa com um conhecido ou não.

“Caráter”, por sua vez, é algo inerente a cada pessoa. Está subordinado à ação, decisão ou vontade de cada um de nós. Ao longo da vida, com frequência, coerência, incoerência e tempo variáveis, é formado, transformado, formatado, reformatado, remendado, ajustado. Mais previsível em uns que em outros. Raro no caráter é sua imutabilidade, pois é naturalmente dinâmico, acompanha a alteração dos tempos e as variações quantitativas e qualitativas das opções proporcionadas pelo destino.

Ao contrário do caráter, ninguém pode produzir nem remendar seu próprio destino. Contudo, uma pessoa pode afetar e até moldar o caráter de outra e, assim, pode ser lida como destino. A efetiva aprendizagem, por exemplo, é um processo com esse objetivo. Pela aprendizagem, formatam-se elementos do caráter presumivelmente úteis a apropriação das opções disponibilizadas pelo destino, seja através de modo, distinção, comparação, intensidade, durabilidade etc. É pela apropriação do conhecimento e a consequente modelação do caráter que cada um constrói seu caminho, exercita seu livre arbítrio e enriquece sua capacidade de selecionar alternativas para trabalhar o destino e buscar a razão de viver.

Para Bauman, a interatividade entre destino e caráter, tendo como meta a felicidade, é a base da arte da vida de cada um. “Líquida e formatável”, como metáfora por ele colocada.

Na medida em que o homem pode ser entendido isoladamente, bem como inserido em vários ambientes vivenciais, claro que cabem entendimentos acessórios e generalizações complementares ao caráter. É comum, por exemplo, qualificar-se o caráter como bom ou mau, firme ou volátil, responsável ou leviano etc. Nesse caso, os adjetivos aplicados dependem do objetivo, do interesse e dos padrões comparativos de quem (pessoa ou grupo) formata a qualificação.

O ensino e a educação, sejam formais, informais, familiares, casuais etc. tendem a modelar o caráter de acordo com as convenções sociais, admitindo-se, por presunção, como os melhores e mais eficazes instrumentos para um padrão de vida feliz. Quem consegue alinhar seu caráter ao padrão desejado por outrem é considerado “bom caráter”. Já o que se nega a esse alinhamento e, ainda, protesta contra ele é considerado “mau-caráter”.

A qualificação do caráter foi mais avultada tempos atrás quando as famílias exigiam e prezavam a honra, a honestidade e outros valores como fundamentos para erigir sociedades confiáveis. Respeito e obediência aos pais e aos mais velhos eram enaltecidos como pontos positivos do caráter. Não só em crianças e jovens, mas também em adultos. A mentira era execrada como mácula.

Até hoje a firmeza de caráter é rigorosamente exigida em fraternidades e sociedades secretas, onde o respeito ao próximo e a solidariedade não cedem lugar à traição, nem à delação, muito menos à prática de injustiça. Pelo contrário, nessas sociedades a ruptura da fidelidade e o descaso à fraternidade são deslizes comportamentais quase imperdoáveis, cobrados com rigor.

Bauman qualifica como tolice primária a tentativa de imitar alguém que se tome como modelo ou referência. Cita como exemplo os que buscam se assemelharem a Sócrates, como modelo exemplar de filósofo e personalidade que escolhera seu próprio estilo de vida em busca da felicidade. E, quem sabe, a tenha encontrado! Ora – explica Bauman - Sócrates usou seu caráter para fazer as opções que lhe deram prazer em viver, ante às alternativas postas pelo destino naquela época. As opções do destino nos dias atuais certamente nada têm a ver com as do tempo, circunstâncias e lugares vividos por Sócrates. O que se pode fazer à sombra do exemplo socrático, é se esforçar para enriquecer e refinar bem o caráter, pois é com ele que se tomam decisões para lidar com o destino em busca da felicidade.

Por fim, alfineta o filósofo polonês que, sendo o caráter inerente a cada um e tão único e próprio quanto sua carga genética, se torna argumento bastante para contrariar as múltiplas receitas generalistas amplamente divulgadas pelos “consultores de autoajuda”, enganadores e ganhadores de dinheiro, que abarrotam as prateleiras da mídia em todo o mundo.

Aproveitando o alfinete do filósofo, vale registrar como vergonha – no mínimo – a banalização do caráter hoje praticada em nosso país, a reboque das famigeradas e mal intencionadas delações premiadas. Tomadas como peça de acusação, na maioria das vezes, una e absoluta, sem qualquer outra prova ou suporte, transformam os que deveriam ser respeitáveis e honoráveis juízes de direito em levianos jurados de programa de auditório de televisão, onde o eco das palmas e dos assobios da plateia orientam a convergência das câmeras para o julgador e seu voto. Este, sentindo-se inflado, propala seu voto, sua sentença, com alarde palanqueiro para conquistar elevado índice de audiência e apoio popular a seus atos e posições políticas.

Dá até para pensar que os “justiceiros” de hoje - os que premiam delatores e se valem de suas delações para condenar - sejam, senão os mesmos, admiradores dos torturadores da ditadura militar e de seus métodos.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 04/08/2018
Reeditado em 07/08/2018
Código do texto: T6409095
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