NOVIÇOS NO LITORAL

Mês de janeiro, madrugada efervescente em Lenhador, localidade (virtual) de considerável altitude no nordeste mineiro, com pouco mais de dez mil habitantes. No pátio em frente à Igreja de São Volfrando (Wolfgang, em alemão), malas, sacos, bolsas, sacolas, colchonetes e travesseiros. Mesmo em pleno verão, as madrugadas por lá são sempre varridas por brisa fria e úmida. Dispensa-se o agasalho, pela certeza de que o tempo esquentará ao raiar do sol. Os adultos aliviavam a friagem na inquietude dos pés e esfregando as mãos. Crianças com touca a cobrir suas orelhas. As menores, de bico na boca, escorando-se no sono. Até o pároco, Frei Duílio, incorporara-se ao grupo. Todos aguardando ansiosamente a chegada de seu Moreira, proprietário e comandante do Tiranossauro Rex, ônibus revisado e lubrificado, especialmente fretado para a missão de conduzir esses lenhadorenses, em férias coletivas, pela primeira vez ao litoral, à praia.

Antes, o Tiranossauro faria paradas na calçada de Ponciana, para embarcar enormes panelas, previsivelmente inexistentes onde se hospedariam. No mercadinho e padaria de Zeleluia, pegaria queijos de Raulino, frangos congelados acondicionados em caixas de isopor, pães doces e de forma e pacotes de bebida láctea em caixas. No açougue de Ranulfo seriam embarcadas as famosas liguiças artesanais, também conservadas e embaladas sob gelo, em caixas de isolamento térmico. No bagageiro, guardadas de véspera, mantas de carne de sol, peças de mortadela, latas de sardinha, óleo de soja, farinha e alimentos por cozinhar. Sem contar as tubaínas e latinhas de cerveja, da mais barata. As economias pessoais não permitiam cartear vantagens.

Como combinado, tudo arrumadinho nas calçadas para não se perder tempo com bagagem. A despeito da idade e da quilometragem do ônibus, seu Moreira mantinha-o em bom e confiável estado, fazendo-o rodar ordinariamente, três vezes por semana, na estrada de terra entre Lenhador e Teófilo Otoni. Era a valência dos moradores locais, na falta de linha formal de transporte.

Seu Moreira chegou a Alcobaça, pouco antes dos ponteiros juntos indicarem o sol a pino. A casa, a uns duzentos metros da praia, com oito quartos e quatro banheiros, com ampla área gramada e arborizada na frente, fora reservada e alugada por telefone pelo período de uma semana. Aluguel e demais despesas rateados entre os 35 ocupantes. Excluídos do rateio ficaram Frei Duílio, acolhido na casa paroquial de Alcobaça e três crianças com menos de cinco anos, que dormiriam com seus pais, em cama de casal.

Seu Moreira retornou de bate pronto. Viria resgatar o pessoal na data combinada.

Na casa, o primeiro exercício foi achar a melhor equação para acomodar os hóspedes em 3 camas de casal e mais 20 camas de solteiro, contando com os beliches. Feitas e desfeitas combinações, chegou-se a um arranjo satisfatório.

Os jovens não perderam tempo. Deliciavam-se na praia. Molhavam os pés e a língua para conferir a temperatura e o sal da água.

Já aproximava das duas da tarde quando o pessoal foi chamado para o almoço. Era uma galinhada simples, preparada com pedaços de frango vindos já temperados. Cerveja e tubaínas ainda quase ao natural, sem resfriamento. Pratos e talheres da casa alugada não eram suficientes. O jeito foi separar o pessoal em dois em grupos. Todos os percalços eram perdoados. Afinal, a turma estava tomada pela alegria da novidade. O que mais interessava era a praia.

O raiar do sol, antes das cinco, marcou a alvorada do dia seguinte. Fila nos banheiros, café, leite, 40 pães comprados no Valtinho, margarina e queijo. Tirando as senhoras mais vividas, todos já dentro de sungas e maiôs. Já passava quase meia hora e Cira não conseguia se adequar ao biquíni que pegara emprestado de Rosa Barriquinha. Cira, magérrima, com quase 1,80m de altura, ossos grandes à mostra, pintada de sarda no corpo inteiro e Rosa com físico que fazia jus a seu apelido. Pedaços de barbante, nós cegos e a criatividade de Ponciana ajudaram Cira a se vestir, ainda que precariamente. Seu Moysés foi quem a acompanhou até a praia. Envergonhada, Cira logo buscou refúgio na água, ficando semi-imersa por um bom tempo. Não tardou uma onda mais forte surpreender e remover-lhe as vestimentas. Alguns cidadãos tentaram ajudá-la ao notá-la em dramático pedido de socorro. Em vão. Cira rejeitava e gritava à aproximação de qualquer homem. Buscava perigosamente lugares mais fundos para esconder suas vergonhas. Ninguém sabia ao certo o que aquela galalau queria. A pequena toalha de um criança não lhe foi suficiente. A contragosto, foi resgatada por um salva-vidas que, mesmo estapeado e arranhado, conseguiu conduzi-la salva à praia onde foi agasalhada numa colcha trazida por seus colegas de excursão.

Todos complementavam a alegria da visita ao litoral, relembrando o vexame de Cira, que não mais saiu de casa até retornar a Lenhador.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 10/08/2018
Código do texto: T6415421
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