TAIÃ

Gaúcho de Santo Ângelo/RS, filho de imigrantes italianos, Pietro Sertori tornara-se famoso por alcançar – ano após ano - invejáveis índices de produtividade em suas lavouras de trigo e soja. Herdara do pai não apenas a propriedade rural, mas também extraordinárias força, dedicação e vontade para pegar no pesado. Os dois filhos, Tarso, já adulto e Genaro, quase adulto, seguiam o bravo exemplo do pai.

Notícias de terras baratas e sucesso de conterrâneos migrados para Mato Grosso e Rondônia nunca lhe entusiasmaram. Contudo, o falecimento repentino de sua amada esposa causara-lhe profunda tristeza. Batera-lhe vontade de mudar. Deixar para trás tormentas de lembranças e saudade. Vontade de buscar novo futuro. Assim, não resistiu à excelente oferta de negócio com suas terras gaúchas.

A exemplo de seus bem sucedidos conterrâneos, adquiriu vasta gleba de terras no município de Poconé/MT. Assentou-se por lá, na zona rural, com seus filhos.

Capitalizado e experiente na produção rural, não tardou a verter alegres lágrimas ao contemplar seus quase infinitos verdejantes campos de soja. Plantados sob moderna tecnologia, com implementos agrícolas de última geração, sementes melhoradas, vigilante controle de pragas e ervas invasoras.

Ao cair das tardes, voltou a dedilhar com prazer e sentimento sua viola. Imortais canções faziam-no soltar voz apaixonada. Fosse no alpendre de sua casa ou no Centro de Tradições Gaúchas - CTG Saudades da Querência - junto a seus conterrâneos e parceiros de alegria. Dava gosto vê-lo interpretando a música “Índia”. Era como se estivesse acariciando a personagem, criada pelos paraguaios Asunción Flor e Ortiz Guerrero e introduzida em nossos corações pelos versos de Zé Fortuna. Tamanho sentimento terminou mexendo com o coração de Taiã. Jovem índia – originária da tradicional tribo dos Beripoconés - cuja figura, sem favor, dava forma e vida à canção.

De olho um no outro, Pietro e Taiã passaram a frequentar quase que todas as tardes o CTG e atrair mais presenças. Ele com sua voz e viola, ela com seus deliciosos caldos: verde, de feijão, de mocotó, de galinha caipira e outros.

Pouco demorou para também compartilharem, as mesmas cuia e bomba de chimarrão. Chegou a namoro sério, desaprovado pelos filhos, ainda saudosos da mãe. Argumentavam também a larga diferença de idade do pai para a namorada. Para completar, Tarso e Genaro preocupavam-se com o fato de Taiã ter corneado e magoado Bagão ao trocá-lo pelo plantador de soja. Bagão era jovem, de pouca alegria, nada simpático, vaqueiro do Major Gurgel, criador de Nelore, em Poconé, vindo de Tocantins.

Como ninguém segura fogo de morro acima nem água de morro abaixo, terminaram juntando as panelas e compartilhando o mesmo teto. Fato que potenciou a irritação – ódio mesmo – do mal encarado vaqueiro.

Taiã – feliz da vida – sentia-se em casa. Curtia seu cotidiano entre a implantação de jardim e pomar ao redor da casa e os afazeres domésticos, com ajuda de cozinheira e lavadeira. Os caldos passaram a ser servidos costumeiramente para a família e, ocasionalmente, para visitas.

A vida social da família girava em torno do tradicional churrasco de fogo de chão, feito num domingo do mês, na fazenda, com a presença de amigos. Além disso, atendiam-se a convites de amigos e eventualmente marcava-se presença no CTG nas ocasiões de festas e reuniões sociais.

Para maior desgosto de Bagão, Tarso passou a namorar Gracinha, filha do Major Gurgel. Uma bonequinha aos seus 18 anos. Genaro não tinha namorada fixa. Flertava e “ficava” com umas e outras jovens prendas, colegas do grupo de danças tradicionais gaúchas. Bagão, também dançarino do grupo, nunca se sentira tão escanteado como então, pelo brilho social dos recém-chegados Sertori.

Voltando da festa de São Benedito – lá comemorada junto com os santos juninos, ao invés de 5 de outubro, dia oficial do Santo – Tarso foi assaltado na estrada deserta para a fazenda do Major Gurgel. Amarrado na carroceria de sua camionete e Gracinha estuprada. Já liberto das amarras, Tarso comunicou o fato ao pai, a seu irmão e ao Major Gurgel. Logo acionaram a polícia local, mas nada encontraram no breu da noite. Nem uma perícia mais meticulosa no local do crime, dia seguinte, evidenciara qualquer pista do criminoso.

No auge da ira, o Major menosprezou a delegada local e incumbiu Bagão, seu homem de confiança, a missão de descobrir o criminoso, prendê-lo e, se oferecesse resistência, apagá-lo definitivamente.

Bagão aproveitou a oportunidade para apontar seu nariz no rumo dos Sertori, especialmente para o jovem Tarso que acompanhava Gracinha naquela noite.

O Major dava força a essa suspeita. Invejoso, nunca festejou a chegada, tampouco o sucesso dos Sertori no agronegócio. O namoro de Gracinha com um Sertori fazia-o morder a língua de ódio.

Pietro, homem pacífico, evitava confrontos e arrelias. Sua verve artística fazia-o destacado astro local, sempre convidado a cantar, recitar poesias, contar causos e dedilhar sua viola. Em pouco tempo angariou a simpatia de quase todos os poconenses. Não gostou da acusação contra seu filho, feita por Bagão, endossada pelo Major. Procurou a delegada de polícia local, Dra. Cenira, esposa do Promotor Teófilo Novaes, para expressar desagrado e pedir que a investigação sobre o estupro de Gracinha fosse conduzida sob o rigor da lei e não sob o calor emocional do Major. Muito menos com a participação de Bagão, incompetente para esse serviço e declarado adversário dos Sertori.

Os dois depoimentos inicialmente tomados foram os de Gracinha e Tarso, vítimas do ocorrido. Ambos declararam não ter a menor ideia de quem teria sido o autor. Mas, ao detalhar o episódio, Gracinha disse ter sido amordaçada com algo que lhe parecia ser uma camiseta de malha suada. A delegada indagou se o cheiro do suor lhe parecia familiar. Ela respondeu negativamente. Indagou aos dois, se estariam dispostos a fazer um teste de comparação entre o odor percebido no ato criminoso e roupa suada de algum suspeito.

Tarso respondeu ser possível, desde que se livrasse do resfriado que pegara, por ficar desnudo naquela noite.

- Como assim, senhor Tarso, se o objetivo do estuprador parecia ser imobilizá-lo para não intervir no crime? Indagou a delegada.

- Talvez para imputar-me a autoria, respondeu Tarso.

O depoimento de Bagão foi adiado duas vezes a pedido do próprio, alegando razões pessoais. Nesse ínterim, Bagão preocupou-se excessivamente em lavar e relavar suas roupas, usando inclusive aromatizantes. Dra. Cenira soubera disso e incluíra a informação no corpo do inquérito. Para evitar atrito com o Major, dispensou temporariamente uma recomendável busca e apreensão nos aposentos de Bagão, na casa do Major. Tentou, por outro lado, recolher vestimentas artísticas por ele usadas no CTG. Debalde. Bagão já as havia removido para lavagem. Se faltavam-lhe provas sobre a autoria do crime, sobravam suspeitas direcionadas a Bagão.

A “boca miúda”, indagou a pessoas confiáveis sobre quem haveria de ter uma roupa usada de Bagão, de preferência, não lavada. A conversa chegou ao ouvido de Taiã, durante o almoço. Ela disse saber de uma amiga que certamente ainda guardava camiseta e cueca de Bagão, provavelmente ainda sem lavar. Tentaria alcançar essas peças e entregá-las a Pietro, para fazê-las chegar às mãos da delegada. E assim procedeu. Pediu a Pietro, contudo, excluí-la da obrigação de revelar o nome de quem lhe entregara aquela roupa. O absoluto anonimato fora a condição imposta.

Gracinha e Tarso, convocados para reconhecer o cheiro da roupa, foram taxativos ao informar que correspondia perfeitamente ao cheiro do agressor.

Dra. Cenira, enfim, tomou o depoimento de Bagão. Não sem convidar formalmente a presença do promotor Teófilo Novaes e mais dois cidadãos comuns, escolhidos ao acaso na comunidade.

Durante a oitiva, Bagão, apesar de instruído e assistido por famoso advogado criminalista local, patrocinado pelo Major Gurgel, mostrou-se extremamente nervoso e vacilante em muitas respostas. Sobre o que fazia e onde se encontrava na hora do estupro, apresentou - claramente hesitante - três versões inconsistentes e contraditórias, com álibis inverossímeis.

Bagão foi surpreendido e amarelou quando lhe foram exibidas a camiseta e a cueca, juntadas anonimamente, ao inquérito. Indagado se seriam suas aquelas vestimentas, negou de imediato. Mas a delegada chegou ao limite da audácia. À vista de todos, cheirou a roupa e conferiu de perto ser o mesmo odor que Bagão exalava no ambiente. Quase todos presentes terminaram fazendo a mesma conferência e chegando à mesma conclusão: havia forte identidade entre os cheiros do depoente e das peças de vestuário ali apresentadas.

A oitiva foi concluída com a seguinte indagação, pela delegada:

- Senhor Alírio Braga (Bagão), foi o senhor quem estuprou Maria das Graças Rangel, na noite de 5 de outubro e imobilizou Tarso Sertori, na estrada de acesso à fazenda do Major Gurgel?

- Não! Respondeu secamente Bagão.

Ainda assim, a delegada pediu formalmente, através do promotor, a detenção preventiva de Bagão, em razão da forte suspeição de ter sido ele o autor do crime investigado. O advogado de defesa do suspeito – acanhado - retirou-se do ambiente, informando que daria ciência ao Major Gurgel sobre o conteúdo da oitiva e das fortes evidências de culpa de Bagão. Aproveitava até para pedir desculpas em nome de seu patrono na causa.

Abandonado atrás das grades, Bagão decidiu confessar o crime, mas pediu para acrescentar detalhes. Primeiro, a infidelidade de Taiã, que – tempos atrás - lhe pedira uma cueca suada para lhe servir de consolo nas horas de saudades. Segundo, que, naquela noite, estuprara não apenas Gracinha, mas, também, Tarso. E que este, a partir de então, passara a lhe dispensar tratamento especial e atencioso, oferecendo-lhe graciosamente mimos e presentes. Sempre rejeitados. Tarso segredara, ainda, a Bagão, trazer guardado secretamente sob seu colchão, a camiseta usada na ocasião para amordaçar Gracinha, como lembrança.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 10/08/2018
Código do texto: T6415425
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