O PATUÁ

Alfredo, extensionista, trabalhando junto a comunidades ribeirinhas do Amazonas, acumulou muita história para contar. Não me saem da memória seus interessantes causos d’água.

Falou-me de Vitório, cidadão tipo indígena, cabelos negros lisos quase nos ombros, pele amorenada. Habilidoso nadador e navegador, vagueava pelas comunidades ribeirinhas a vender mercadorias não perecíveis: roupa, rádio, lanterna, sabonete, panelas, fogareiro, facão, enxada etc. Fazia-se acompanhar sempre por Mugue, índio robusto, esperto conhecedor das águas e treitas amazônicas. Era seu fiel navegador-ajudante. O barco, bem modesto para o serviço de loja ambulante, bastava também aos dois como dormitório. Mesmo quando atracado ou ancorado.

Como o dinheiro em moeda corrente de sua clientela era escasso, praticava o escambo. Recebia em pagamento produtos artesanais: peneiras, cestas, arcos, flechas, cocares, colares feitos com contas e sementes, guaraná em “pau” e ralado, castanha-do-pará, tucumã etc. Também produtos tidos como medicinais: mirantã, miraruíra, carapanaúba etc. Vendia essas coisas no porto de Manaus para negociantes de bugigangas artesanais e nos barcos de passageiros em trânsito pelo rio Amazonas. Neste caso, pedia permissão ao comandante do navio e atracava seu barco. Acompanhado de Mugue subia a bordo, oferecia sua mercadoria e convidava os interessados a conhecer sua tosca loja flutuante.

Um dia, terminado o comércio a bordo do navio de passageiros, retornaram ao barco. Surpreenderam-se com a presença de uma moça bonita, atraente, de cabelos negros compridos, a examinar as mercadorias. Não a tinham visto no navio, tampouco quando descera até o barco. Indagou e observou:

- O que deseja, senhora? Vou desatracar. Não há mais tempo para compras! Já comuniquei ao comandante do navio o procedimento de desatracar. Retorne, por favor!

- Não se preocupe comigo. Desatraque! Ficarei com você, enquanto permitir.

Vitório nada entendeu dessa afirmação. Ainda confuso, decidiu apostar até onde essa história ia chegar. Desatracou, recostou-se na proa em sua cadeira preguiçosa, bebeu água fria da moringa e, para relaxar, sorveu uma caneca de cauim com açaí. A moça não parava de examinar os adereços pendurados em finas cordas coloridas de tucum. Escolheu um patuá trabalhado em casca de castanha e pendurou no pescoço. Era o que Vitório usava há anos e não estava à venda. Mas, não se importou em deixá-lo enfeitar aquele lindo colo moreno.

Vitório não se dobrava para qualquer mulher. Colocava sua independência sentimental acima de qualquer tentação. Em Manaus, tinha um par de namoradinhas fixas, mas, sem compromisso. Porém, neste caso, a cada vez que mirava a moça, sentia-se fortemente atraído. Parecia um feitiço.

Inebriava-se com seu diferente e acentuado perfume de ervas silvestres. Nem mais olhava para os lados. Tinha a vista fixa na apaixonante estrangeira que lhe caíra a bordo como presente.

Ergueu-se lentamente. Em passos mansos, como um felino, caminhou na direção da moça. Ela o recebeu com braços abertos e corpo morno. Abraçaram-se, acariciaram-se, beijaram-se e, por fim, mantiveram-se em colóquio de amor, por horas. Foram interrompidos pelo índio Mugue que lembrava estar o dia terminando, a escuridão chegando e a necessidade de achar uma enseada para ancoragem. Providenciariam também algo para comer, geralmente peixe ou caça que traziam já cortados e armazenados no freezer do barco.

Mugue sabia da preferência de Vitório, que terminou sendo compartilhada pelos três: peixe cru, cortado em tiras e temperado com sal, limão e folhas aromáticas amazônicas. Beberam, em cuia comum, cauim com açaí.

Vitório e sua hóspede decidiram dormir em redes próximas armadas em mastros da proa. Mugue buscou seu aposento de sempre na cabine. Embora fosse hábito dos navegadores dormirem despidos, naquela noite falou mais alto o respeito. Vestiram-se com sungas. Aplicaram-se repelentes à base de óleo de peixe. A visitante rejeitou o repelente, embora a nuvem de carapanãs fosse ameaçadora.

Antes do sono chegar, Vitório ainda cantarolou Carimbós e outras músicas típicas da região.

Pela madrugada, bateu suave e agradável brisa. Vitório acordou e jogou seu braço sobre a rede da visitante. Surpreendera-se com sua ausência. Levantou-se e a procurou por toda a embarcação. Nada.

Cabisbaixo, sem ter ideia do que acontecera, resignou-se. Tomou guaraná ralado na língua do pirarucu e ordenou zarpar. Enquanto singravam águas amazônicas rio acima percebeu um boto cinza brilhante a nadar quase colado a seu barco. Fazia coreografias. Não tardou a notar no pescoço do boto, seu patuá, aquele levado pela visitante.

Por mais de ano, sempre ao navegar, via-se acompanhado daquele boto carregando seu patuá. Falava com ele, cantava, dava-lhe peixe cru, batia palmas e assobiava para suas piruetas e saltos à flor da água.

Certa manhã, ancorado naquela mesma enseda em que perdera sua inesquecível visitante, caiu em tristeza ao ver o boto boiando ao lado do barco. Desceu a água, notou ter sido abatido com tiros. Fez-lhe carinhos, chorou e levou-o para ser enterrado na margem. Voltou a bordo e viu sobre sua cadeira de descanso, o patuá.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 10/08/2018
Código do texto: T6415461
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