Apenas um trem e uma saudade.

APENAS UM TREM E UMA SAUDADE.

Era um bairro proletário, uma rua de terra. Nem sei se possuía nome! Mas todos a conheciam como “a rua da linha do trem”. Recordo com clareza que mamãe falava para suas amigas: “... eu moro na linha do trem”.

Findara a segunda guerra mundial, a agitação era grande pelas ruas, todos se cumprimentavam e diziam: “Graças ao bom Deus!”.

Alguns dias depois, o povo encaminhou-se para a estação central para aguardar o trem que traria de volta muita alegria, como também tristeza, num misto de esperança e incerteza, era a hora da verdade. Todas as informações seriam finalmente checadas, nada de meias palavras. O trem chegou na estação quase ao meio-dia, porém papai não voltou! Mamãe chorava muito, pegou-me pela mão e retornamos para casa.

Naquela tarde, na inocência dos meus cinco anos, eu estava brincando junto à cerca de madeira em frente de casa, lá pelas cinco e meia. Excepcionalmente, quase nenhum vizinho estava do lado de fora, pois a maioria após receber seus parentes na estação, continuava dentro de casa. Foi quando o trem apitou. Assustei-me, a bola que chutava saiu rápida sobre os trilhos. Corri para pegá-la e mamãe também. O trem continuou a apitar insistentemente. Seguiu-se um forte ruído de atrito de ferros e ele acabou parando. Mas... Eu peguei a bola, antes da mamãe.

Eram outros tempos! A via férrea era a estrada mais curta que nos levava aos diferentes bairros, cidades e estados.

À tarde, os moradores colocavam suas cadeiras junto às cercas e ali faziam seus bate-papos descontraídos. Contavam casos, piadas e mexericos, que só eram interrompidos pelas barulhentas locomotivas, arrastando seus vagões, ora de cargas, ora de passageiros.

Dependendo das programações das rádios, ali ficavam até as sete ou dez horas da noite quando, após despedirem-se, recolhiam-se e iam escutar as notícias.

À medida que fui crescendo, estudando e depois trabalhando, também os trens foram evoluindo, tornando-se cada vez mais sofisticados.

Novos modelos, mais rápidos e arrojados, tinham as suas

fotos publicadas nos jornais, aonde os artigos faziam menções às suas qualidades.

Quando criança, nas quentes tardes de verão, enquanto o sol fingia não perceber que era hora de partir, tentando evitar que a lua mostrasse todo o seu esplendor, brincava com meus amiguinhos e amiguinhas. Bastava o trem apitar e nós nos colocávamos em posição de partida na direção do poste de luz. Quando ele dava o terceiro apito, para nós era o sinal de sair correndo até o terceiro poste e quem chegasse em primeiro lugar, recebia de prêmio um chocolate, balas ou uma “mariola”, gentilmente doados pelos pais que ali ficavam a conversar. Normalmente, até a hora em que todos se recolhiam, passavam três trens.

Nesse lugar foi que eu cresci, estudei e até hoje moro. À noite, fico sentado no banco junto ao muro que tomou o lugar das velhas cercas de madeira e olho perdido a linha do trem que vai estreitando, até tornar-se um simples ponto bem na base da lua que, quando nova, parece um túnel de paz, adentrando no escuro horizonte salpicado por estrelas, aonde ao primeiro apito, surge uma pequena silhueta do “cavalo de ferro” que vai aumentando, assim como o barulho de suas engrenagens, até sumir de vista e eu, poder novamente, escutar o grilo que volta ao seu “cri-cri” interminável, no capim que teima em crescer próximo aos trilhos.

Hoje sou maquinista aposentado. A estrada de ferro foi minha casa, minha professora e também, quem até aqui me trouxe.

Não casei, não tenho filhos, nem sonhos e jamais me permiti o direito às ilusões.

Por toda a vida dediquei-me a domar esse “cavalo de ferro” impetuoso, cada vez mais rápido e mais bonito, enquanto eu fiz o caminho contrário, isto é, cada vez mais calmo, mais vagaroso e mais feio. Portanto, não sei bem porque, o destino reservou-me tão pouco, pois o mesmo trem que não foi capaz de trazer meu pai de volta, ainda foi quem levou minha mãe embora, no dia em que peguei a bola antes dela.

Apesar do tempo ter passado, de tantas evoluções e do enorme progresso experimentado pelas locomotivas, vagões e vias férreas, minha vida resumiu-se a um só modelo de trem, muito simples, ainda com caldeira, mas insuficiente para esquentar meu coração solitário.

É por isso meu Deus que procuro uma razão!

Não quero nada para justificar o meu sofrimento, mas que ao menos me permita entender a vida da qual logo me despedirei.

Perdoe minha perplexidade e a conclusão de que, para mim, tudo foi e ainda é “apenas um trem e uma saudade”.