Relato de um ex-gari

Relato de um ex-gari

A história que vou contar tem muito a ver com sonhos, esperanças e fracassos, amor, incentivo e derrota. Não necessariamente na mesma ordem.

Aconteceu em uma manhã quente, como outra qualquer em um Estado distante de meu berço natal. Esse onde hoje vivo. Vim para trabalhar no Distrito. Lugar que eu conhecia apenas pelo nome de Zona Franca de Manaus. O emprego era garantido, juntei o resto do dinheiro de meu seguro-desemprego e mudei-me com uma mochila e um sonho. Na verdade, um sonho inferior ao que eu tinha nos bancos escolares. meu novo sonho era mais palpável, realizável, pensava eu. O emprego no Distrito não “rolou”. O desemprego doía tanto quanto a fome e a vergonha de estar dependendo de estranhos - mesmo que eles acreditassem que uma hora uma porta se abriria para mim.

Enquanto esperava, fui ser gari em uma empresa que prestava serviços para a Prefeitura. Não era o emprego que um jovem deseja. Mas, com o pouco estudo, era o que pagava as contas. Não conseguia gostar do emprego, entretanto, cuidava dele, era isso ou viver na rua, agora que eu tinha deixado os amigos e ido morar só em um bairro afastado - e perigoso.

Um dia as coisas estavam fora de controle. Na noite anterior um dos colegas se feriu durante a coleta e o fiscal ficou em cima de todos nós, cobrando mais atenção e exigindo que o tempo fosse respeitado. A lembrança do corte do colega estava nos perseguindo e o carro com o fiscal também. Era um dia horroroso e, sabia eu, poderia piorar, principalmente por estar próximo de uma Escola. Era passar por ali e ouvir uma piada sem graça. Mas, quando o caminhão parou, entendi que o que estava ruim poderia ficar muito pior do que eu imaginara. Havia muito mais jovens que o habitual na porta do Colégio. Espremi minha insignificância e me dirigi para o portão de descarga, quando uma voz doce começou a me chamar de “Gato lixo”. Os colegas desceram do caminhão para me ajudar e a minha alma,despedaçada, rolava dentro de mim, procurando um espaço. Confesso que essa foi uma das vezes em que pensei que acabar com minha vida acabaria também com a minha dor. Só que de repente o guarda escolar, que eu nem vira desaparecer, voltou com uma senhora e ela perguntou alto:

- O que houve aqui? - E se dirigia não aos jovens, mas, à nós, os trabalhadores. Eu não respondi e nem os rapazes. Alguém disse um bom dia desconcertado, entretanto, ela queria mesmo saber. Os jovens silenciaram-se como mudos. E ela se dirigiu diretamente a mim: “O que houve, senhor?” . Abaixei os olhos e continuei recolhendo o material, sem graça e, então, para piorar, o carro do fiscal parou há 10 metros do local.

Um dos jovens respondeu por mim:

- As meninas costumam brincar com o gari bonito.

Um dos rapazes respondeu:

- Brincar não, diretora. A turma costuma zoar ele e os outros.

A mulher colocou todos para dentro da Escola. Não ouvi um único comentário de desgosto. Todos se recolheram.

E então ela se virou para o motorista:

- Está na hora do almoço. Vocês almoçam aqui hoje.

E antes que disséssemos algo, o guarda atravessou a rua e foi direto no carro do fiscal.

Terminamos de carregar o caminhão, deixamos encostado na calçada, onde o guarda sugeriu e entramos. Alguém surgiu com toalhas e direcionou-nos ao banheiro dos funcionários, onde fizemos nossa higiene. Era um espaço limpo, bem cuidado, perfumado até. Eu que há muito me sentia mal, senti-me mais deslocado. E então uma jovem bateu a porta e pediu que a seguíssemos. Fomos todos para o pátio. Local coberto, mesas espalhadas em um semicírculo gigante, onde jovens se espremiam, em suas conversas confusa e desencontradas e então vi a mulher sentada ao lado do fiscal. almoçamos juntos, com todos os alunos conversando entre si, em tom respeitoso. Quando o almoço terminou, fomos levados para próximo da mesa. confesso que eu estava muito mais nervoso que antes. Nos sentamos também, bem próximo dela e então, a tela se abriu na parede. E a mulher falou:

- Hoje alguns alunos desrespeitaram alguns trabalhadores municipais. Quero falar sobre isso.

O som geral foi de arrependimento. Entendi logo que aquela mulher era temida. Então, ela continuou:

- Vocês acham bonito desrespeitar uma pessoa por sua função? - Silêncio geral. Os alunos todos sem graça, como se todos ali compactuassem com o que fora feito fora da Escola. E ela perguntou:

-Qual é a pessoa que vocês mais admiram aqui na Escola?

E professores e alunos responderam que era ela.

Então ela perguntou de novo: “Por qual motivo?”

Um dos jovens ergueu-se e respondeu:

-Porque a senhora é uma professora reconhecida, é uma artista e escritora reconhecida nacionalmente e temos orgulho de estar com a senhora. Todos bateram palmas.

E ela, fez um sinal para que o jovem sentasse e perguntou:

-Vocês ririam de mim?

Eles responderam negando.

-Zombariam de minhas escolhas?”

Um jamais enorme espalhou-se pelo ambiente.

Então ela disse o que eu jamais esperava:

-Hoje vocês zombaram de mim.

Uma confusão se fez e ela apertou um botão no controle que estava em sua mão fazia um tempo e uma imagem surgiu na tela.

Era uma carteira de trabalho, com a foto dela, mas jovem. E ela fez a página virar na tela e lá apareceu uma função: Gari.

Até nós ficamos confusos agora. Burburinho geral entre a maioria dos alunos.

E aquela mulher deu a maior lição de vida que provavelmente todos tivemos em nossa vida.

-Todo trabalho é digno. Vocês estão classificando pessoas por títulos e função, mas, o ser humano é mais que uma função adquirida, seja por formação ou por falta dela. Levantar cedo, recolher as sujeiras que os outros deixam nas ruas e calçadas, nas mentes das pessoas, nas vidas alheias é uma função que a maioria dos profissionais exercem. A Polícia faz a limpeza dos crimes, os Psicólogos e Psiquiatras fazem a limpeza na psique dos seus pacientes, Advogados e juízes são garis também. Professores também são garis. Não interessa a formação de uma pessoa para ela ser respeitada com dignidade. OU vocês aprendem hoje a respeitar ao próximo ou serão sempre o pior tipo de pessoa: Mesquinhos. A mesquinhez de caráter é o pior defeito de um ser humano e não influenciam nas escolhas profissionais, entretanto, aparecem nas atitudes e nas relações interpessoais. Vocês riem hoje de um gari e amanhã de um professor, afinal, as funções perdem importância conforme a Sociedade evolui.

E ela falou muitas coisas mais sobre respeito, sobre dignidade e sobre vida. Em resumo, dessa visita estranha, surgiu um projeto de reciclagem na Escola e nós fomos escolhidos como jurados. Foi um aprendizado gigantesco para todos nós e para mim, foi minha descoberta como pessoa. Eu redescobri o sonho que tinha de educar e de ser exatamente como aquela mulher.

Hoje sou quem sou e estou onde estou por ter passado exatamente por uma situação constrangedora. Voltei estudar, voltei sonhar e acreditar em mim, independendo de quem mais acredite, pois ali aprendi que quem acredita no ser humano, acredita em alguém com o mínimo de possibilidade e amplia sonhos. Hoje eu sou um dos que ampliam sonhos, como educador e como ser humano.

Elisabeth Lorena Alves
Enviado por Elisabeth Lorena Alves em 12/08/2018
Código do texto: T6416983
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