À minha Avó Zita

Belinha, tão pequenina, é uma poodle já com seus 11 anos. Estávamos nós, eu e Belinha, sentadas na sala de estar da casa que já parece tão minha quando, de repente, a cena transfigurou-se em um quadro antigo mas nunca desbotado. Sentei-me ao lado de Belinha e lhe contei que, na minha infância, conheci um poodle como ela. Ela se chamava Sissi e era a cachorra de minha avó, Zita. Meus olhos encheram-se de lágrimas e, por um segundo, eu não estava ali: estava no Edifício Mar Del Plata, à espera de minha avó que fora à padaria.

Eu acabara de acordar e procurava Sissi pela casa. Procurava-a por todo canto e, finalmente, encontrava-a na sala, perto do sofá, com os olhos acesos e ansiosos para que eu lhe cumprimentasse. Brincávamos enquanto eu ligava a televisão e esperava os desenhos começarem. Ouvimos um barulho e Sissi começa a latir e a correr para porta: vovó chegara! A porta se abre, lentamente, e vejo minha querida avó entrar na sala com as compras na mão. Levanto-me correndo e vou a seu encontro: ela trazia cheetos, batom e, claro, o macarrão que faria pra mim quando fosse noite. Abraço-a e sinto o cheiro de seu perfume Lulu, tão característico, e dos cigarros que ela fumara agora há pouco. Ela me pergunta se eu dormira bem e eu digo que sim, minha querida avó, nunca tive uma noite de insônia nessa casa. Conversamos sobre a novela, sobre minha escola, sobre como andava a mamãe e, finalmente, ela me pergunta: que jogo jogaríamos hoje? Crash, é claro! Ela ri e vai em direção ao PlayStation 1 que me dera de aniversário e, de repente, a tarde inteira havia passado e nós duas já estávamos quase zerando o Crash. Ali, eu era a criança mais feliz do mundo. Era hora de irmos ao salão mas, antes, passaríamos na crepom e olharíamos alguma lapiseira já que a diretora havia me autorizado a escrever de lapiseira! E, bem na hora que iríamos caminhar pela rua do ouro passeando com a Sissi, meu namorado retorna à sala e me pergunta se eu estava conversando com Belinha, sua cachorra.

Naquele instante, quis chorar. Por um segundo, a criança que passava o dia com sua avó não existia mais e, como um golpe em meu coração, eu me lembrava que a senhora não estava mais aqui. Ah, minha avó, como eu queria te apresentar esse menino! Queria poder te contar que ele gosta tanto de mim, que nos damos tão bem, queria te dizer que me sinto em casa junto à sua família e queria que ele pudesse te olhar nos olhos. Queria poder lhe dizer que estou na mesma faculdade que você estudara e que, todos os dias, quando entro naquele prédio, lembro-me da senhora. Queria poder lhe abraçar e contar que quero ser professora mas que entrei, recentemente, na DAJ e que isso tem me feito querer ser defensora pública. Você pensou em estagiar na DAJ, vó? Esse ano a Divisão fará 60 anos! Como foi seu período de faculdade? Qual era sua matéria preferida? Ah, minha avó, queria poder lhe contar que tenho insônia, que, muitas noites, passo acordada e que tudo que eu queria era mais uma noite em sua casa. Conversaríamos sobre tudo, assistiríamos a novela e, de manhã, levaríamos a Sissi para passear na rua do ouro. Queria um abraço seu. Queria, mais uma vez, sentir o perfume Lulu e encostar nos seus cabelos tão lisos. E, por falar em cabelos, tenho deixado o meu natural e parei de fazer escova progressiva! Sei que parece que não vai dar certo mas, minha avó, acho que você ficaria feliz com o resultado! Queria lhe agradecer por ter me ensinado tanto, sabia que sou muito parecida com você? Acho que puxei um pouco da sua força e determinação: quando decido alguma coisa, vou até o fim e tenho certeza que aprendi com você. Também aprendi a conversar com todo mundo, assim como você quando chegava em algum lugar novo: e, acho que por isso tenho pensado na defensoria pública, aprendi com você a lidar com as pessoas. Você se lembra das moças da crepom? São as mesmas até hoje e, sempre que vou lá, elas falam de você. Queria que pudéssemos ir à Crepom mais uma vez. Mamãe diz que somos mesmo muito parecidas, às vezes ela me chama de “Mãe Zita” e diz que somos muito inquietas e ansiosas. Somos mesmo, né vó? Ah! E mamãe vai bem, você ficaria impressionada com como ela parece jovem! Mas, às vezes, ela anda triste... queria que você estivesse aqui para cuidar dela. Ah, minha avó querida, queria lhe contar tudo! Queria um dia, ao menos um dia, pra vê-la de novo. Queria ouvir sua voz: “Fernandinha, vai dormir!”. Queria um conselho seu. Mas, num piscar de olhos, estou novamente naquela sala e digo ao meu namorado que estava contando à Belinha que ela me lembra uma outra cachorra que conheci, há algum tempo.

Naquele instante, minha avó, senti-me inteiramente completa. Senti-me sortuda e abençoada e torci para que nos reencontrássemos. Ainda que nosso convívio tenha sido breve, você ganhou todo o meu coração. Sentia-a ali, do meu lado, senti que a apresentava o meu namorado. Senti que a senhora veio me dar o conselho que tanto precisava ouvir. Senti a sua lembrança, que guardo com tanto carinho, fazer-me inteiramente feliz e as tantas angústias e ansiedades tornaram-se desimportantes ante o tamanho da alegria de ter vivido tudo que nós vivemos. Percebi que as alegrias que acreditava serem importantes, das batalhas acadêmica e profissionais, eram minúsculas perto dessa alegria e gratidão que me tomava. Senti-me, minha avó, em paz. Senti-a do meu lado. Senti que poderia dormir em paz e que você me protegerá, por todo o resto de minha vida. E tenha certeza, vovó Zita, que o nosso filme, construído com tanto amor e cuidado, passará, sempre, em meu coração.