HIPÓTESES E CERTEZAS MUDAS

Mal assumira sua cadeira de deputado federal em Brasília, Charles Lemont tratou de arranjar um emprego para seu conterrâneo - e tido como amigo – Herculano Moraes. Cargo comissionado num ministério comandado por correligionário, com quem mantinha rica carteira de créditos eleitorais.

Até então, Herculano, contador na média cidade de Uberópolis, vivia dos ganhos de seu escritório. Tinha como melhor cliente o sogro, fazendeiro produtor de leite e dono de um bem sortido armazém atacadista e varejista de secos e molhados.

Vaninha era o xodó da cidade. Bonita, de não passar despercebida por qualquer vivente. Falava e gesticulava com inigualável finesse. Cativante no sorriso, lembrava uma delicada bonequinha. A legião de apaixonados por ela excedia a população masculina local. Sortudo Herculano! Todos diziam, ensejando ou não inveja e ousadia.

Charles fez sua vida também em Uberópolis como tocador de berrante e, mais tarde, fabricante. Vendia-os por atacado para as festas de rodeio e lojas de artesanato, Brasil a fora. Casou-se com Julita, filha de um rico curtumeiro. Loura, bela, alta e corpo de miss, Julita fazia-se provocante em qualquer ambiente, por seus trajes ousados, costumes e rebolado. Charles não lhe era nada fiel. Incorrigível namorador e “pegador”. Por suas funções de candidato, ausentava-se com muita frequência da cidade. Por onde passava, não enjeitava uma beira de cama alheia, nem um cangote cheiroso.

Dono desse perfil, nunca se conformara com sua distância formal de Vaninha. Sua amargura era contingenciada pelo respeito a seu maior apoiador e financiador político na região.

Armou uma treita. Herculano, em Brasília, arrastaria sua linda esposa Vaninha. Para tanto, contava também com a indisfarçável admiração do amigo contador. Sabe-se lá, a razão. Herculano, além de se achar fisicamente parecido com Charles, gostava de imitá-lo. Combinava paletó ou blazer com camisas, calças e sapatos ao estilo do amigo. Chegou a comprar um relógio de algibeira, com corrente dourada, igualzinho ao de Charles. A única diferença era visível nos fundos. As iniciais “CL”, gravadas no fundo de um e “HM” no do outro.

Como parte de seu plano, Charles não tardou a incluir Vaninha entre os funcionários de seu gabinete parlamentar. Pegou carona no costume brasiliense de as pessoas trocarem inocentes beijinhos faciais nos cumprimentos menos formais. Em seguida, vieram os abraços que se foram tornando mais calorosos e demorados quando no escondido do gabinete.

Mesmo sem clara “bandeira”, já se cochichava um “caso” entre os dois. Herculano passou a suspeitar. Contudo, as justificativas ou desculpas de Vaninha aparentemente bastavam.

Isso porque – ninguém imaginava – Herculano, por sua vez, já tinha antigo e secreto caso com Julita, desde a vidinha provinciana em Uberópolis. A dupla se esbaldava durante as ausências do candidato a deputado. Talvez por aí se explique a mania de imitar o amigo político.

As sessões noturnas da Câmara, nas terças, quartas e quintas feiras, forçavam plantão do pessoal de gabinete até o encerramento da sessão. Comum chegar às onze horas da noite.

Herculano já acostumara a essa rotina. Na maioria das vezes, esperava a esposa no pé do prédio onde moravam, ainda com o carro quente, recém-chegado da casa de Julita. Agradecia com sorrisos e sem manifestar dúvidas o “serviço de entrega noturna em domicílio” de Vaninha. Curioso é que, além cornos mansos, os dois muitas vezes saiam se acompanhavam mutuamente, sem as esposas.

Julita detestava política. Em casa, ao contrário do marido, nunca sintonizava a TV na emissora da Câmara, a não ser quando na alcova com Herculano. Era para monitorar a presença do marido em plenário e saber o término da sessão noturna.

Certa noite, no meio das safadezas, faltou luz geral em Brasília. Sem monitoramento, Herculano cuidou de se vestir sem abotoar todos os botões. Saiu às carreiras. Conseguiu chegar a tempo e inteiro no estacionamento do prédio, onde Vaninha o aguardava, no carro do deputado.

Recuperada a energia elétrica, sem desculpas, nem muita conversa, banharam-se, fizeram um pequeno lanche e dormiram. O mesmo ocorrera com Charles e Julita.

Dia seguinte, enquanto Herculano tomava café, Vaninha cuidava de arrumar a cama. Notou o relógio de algibeira quase nunca pendurado na cabeceira. Não por curiosidade, bateu o olho no fundo e viu iniciais “CL”. Valei-me, meu anjo protetor! Teria Charles esquecido seu relógio ali?

Igualmente, Julita deparou com o relógio (do marido?) pendurado no mancebo de madeira, onde nunca estivera. Também se apavorou ao ler as iniciais “HM” gravadas no fundo. Teria Herculano pegado o relógio errado? E agora? Perdidas, trataram de esconder os relógios. Mais tarde, Julita ficaria ainda mais intrigada, ao saber por Herculano que ele não levara consigo o relógio, naquela noite. Afirmava, com certeza, tê-lo deixado pendurado na cabeceira de sua cama. Charles também, perguntado por Vaninha, daria a mesma informação, de que não usara o relógio nos últimos três dias, esquecendo-o pendurado no mancebo de madeira.

Várias indagações e hipóteses permearam o raciocínio de ambas as esposas. Imagine! Porém, a solução foi combinar um jantar, a quatro, na casa do deputado, oportunidade para destrocar os relógios, sem perguntas, longe da vista dos esposos.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 25/08/2018
Código do texto: T6429955
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