A herança

 
Li recentemente que Mr. Catra deixou 32 filhos, 3 esposas e 4 netos.  Não sei muito sobre ele.  Mas, por curiosidade pesquisei um pouco e fiquei pensando como será esse processo de inventário. Espero que ele tenha deixado um rico legado de valores para os filhos e não apenas dinheiro.
 
Relembrei também da célebre frase de Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria...”.  Talvez, esta não seja a melhor opção, mas com certeza  entre ter filhos e deixar-lhes como herança tão somente bens materiais,  prefiro a escolha de Brás Cubas.
 
Grande parte dos meus valores e visão de mundo eu devo ao meu pai, Altino. Ele era lavrador e artesão. Não amealhou bens materiais. Morreu quando eu tinha 11 anos de idade. Mas, assim como Mr. Catra, viveu intensamente. Marcou-me profundamente seu modo de viver, apesar do pouco tempo que tivemos juntos. 

Ele e minha mãe morreram ambos com 45 anos de idade. Muito jovens para os padrões de hoje. Deixaram - nos como herança um pote, uma rede e uma camisa sem os botões. Por outro lado, o que nos transmitiram como exemplo de vida e valores não tem preço.
 
Apesar de não terem valor comercial algum, esses objetos têm um significado especial para mim, pois estão atrelados à forma como viveram - cada dia como se fosse o último.  Se certo ou errado, não cabe a ninguém julgá-los, pois sei que, independemente de suas escolhas, foram importantíssimos na minha formação, mostraram-me que  amor, honestidade, confiança, verdade e lealdade são valores eternos; que tudo nos pode ser tirado, mas dignidade é inerente a cada ser humano.

Cada palavra dele ainda ressoa em minha mente, pois era um homem à frente do seu tempo e muitas coisas que ele ensinou aos filhos, somente hoje estão sendo ensinadas às pessoas; algumas, em livros de autoajuda. Autodidata, aprendeu a ler e escrever sozinho. Leu tudo que encontrou e foi possível diante dos seus poucos recursos. A arte era uma forma de sobrevivência e um dom.

Não amealhou bens materiais, pois não os valorizava, via-os como "necessidades", porém, tinha apego e firmeza na defesa do que acreditava. Viveu quase como um nômade e liberdade era sua filosofia de vida.  Meu histórico escolar é a prova cabal do que digo! Era um homem inquieto e de coragem extraordinária.

E, o que significam os objetos? Não sei. Cada um pode dar o entendimento que quiser. Para mim, o pote significa que devemos saciar nossa sede de vida, vivendo intensamente; a rede é que devemos descansar - sempre que minha vida está tumultuada -, lembro-me do meu pai falar: "a casa é pra ser um lugar de descanso e paz". Ele detestava discussões e brigas familiares. A camisa sem botões era da minha mãe, ela morreu antes de terminá-la, entendo-a como relacionada a imprevisibilidade da vida, pois de um momento para o outro podemos partir e nada  levaremos ou terminaremos, mudança e incerteza é o que temos de concreto.

Se estamos aqui só de passagem, será que vale a pena perder tempo com coisas insignificantes? Entendo que não, por isso, prefiro seguir a música de Toquinho e Vinícius que meu pai tanto cantarolava enquanto fazia suas artes e que tem como tema central viver e  amar... 



Como dizia o poeta

 
Quem já passou por essa vida e não viveu,
Pode ser mais mas sabe menos do que eu.
Porque a vida só se dá pra quem se deu,
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu.
 
Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não.
 
Não há mal pior do que a descrença,
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão.
 
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair.
Pra que somar se a gente pode dividir.
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer.
 
Ai de quem não rasga o coração,
Esse não vai ter perdão.
Quem nunca curtiu uma paixão,
Nunca vai ter nada, não.



Imagem do Google.

Nota da autora: A frase citada no texto é dita pelo personagem Brás Cubas em Memorias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.