DESLEMBRAR

Escrevo somente para não me esquecer, ou melhor, não deslembrar o episódio que irei narrar:

Passamos, eu, minha esposa e casais amigos, uma semana inteirinha em Arraial d’Ajuda e, como fazem todos os avós, trouxemos de lá lembrancinhas para os netos, sendo as lembrancinhas das meninas quatro tornozeleiras (melhor seria dizer pulseiras de tornozelo, para não confundir com aquelas atualmente em voga e que ornam alguns políticos).

Chegando em casa fomos recebidos afetuosamente pela neta caçula, Katarina (para mim a Super Katá), de cinco anos, ávida de saber o que havíamos trazido de presente.

Minha esposa, então, lhe mostrou as tornozeleiras e lhe disse que poderia escolher uma delas para si. Mas ela foi além e não só escolheu a sua, a rosinha, como distribuiu as outras entre suas primas que se encontravam ausentes, instruindo a avó para não errar na hora de presentear às demais, dizendo:

-Vovó, a azul é da Gabi; a coral da Lulu e a caramelo da Gigi, entendeu?

A avó assentiu e ela prosseguiu:

-Então repete.

E a avó, pacientemente, repetia uma, duas, três vezes, até ela se dar por satisfeita e resolver retornar para sua casa, mas não sem antes voltar-se para mim e dizer com certa seriedade:

-Vovô, eu vou colocar ali em cima na ordem, viu? A azul é da Gabi; a coral da Lulu e a caramelo da Gigi. Não deixa a Vovó deslembrar!

No momento achamos graça e até comentamos o seu conhecimento do prefixo “des” e a engenhosidade no seu emprego, posto que deslembrar é, no mínimo, pouco usual.

Eu confesso que até então nunca tinha ouvido tal palavra, pelo menos dela não me lembrava. Curioso fui verificar e para surpresa minha encontrei o seu uso por vários autores:

Guimarães Rosa a utilizou em Grandes Sertões: Veredas:

“...Um pássaro cantou. Nhambú? E periquitos, bandos, passavam voando por cima de nós. Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar?...”;

também Cruz e Souza a empregou de forma magistral:

...

“Como podeste deslembrar o tempo,

Em que no grato despontar da vida

Nós divagar

Pela espessura do copado bosque

Íamos ambos, da rolinha ouvindo

O suspirar?

Como podeste deslembrar os dias

Em que, innocentes, nas manhãas de estio,

Faltando amores,

Íamos juntos no vergel florido

Colher, de orvalho rociadas inda,

Mimosas flores?

Como podeste deslembrar as tardes

De primavera sem rivais, que juntos,

Ao pôr do sol,

Sob a ramagem do salgueiro alado

Ouvir nós fomos tanta vez o canto

Do rouxinol ?”

...

A encontrei, ainda, contida em verso de Wander Porto:

...

“Vai, Minha Alada Deusa,

Vai ao Mundo,

Vai destilar teus desejos,

Vai deslembrar teus amargos,

Vai bailar teu Tango Argentino”

...

E, também, no livro com o Título “Deslembrar”, de Luciano Pontes.

Se mais não achei, certamente foi porque parei a pesquisa por aí.

A descoberta me deixou acabrunhado, não pelo desconhecimento da expressão, mas porque acho que dificilmente comporia o prefixo “des” com o verbo “lembrar”, acaso me faltasse em dado momento um termo para exprimir esquecimento. Afinal estou às vésperas de meus 72 anos de idade e atuando há mais de quarenta em uma profissão em que a leitura e o uso da palavra falada e escrita é imperativo, além de ser leitor frequente de textos poéticos. De sorte que algum contato com o emprego do prefixo de negação fora do usual já devo ter tido e não deveria estranhar, como estranhei, a utilização dada pela neta, a ponto de motivar uma pesquisa sobre sua possibilidade.

Tenho certeza que deslembrar não consta do vocabulário da Super Katá e talvez, hoje, dela nem se lembre mais, o que me faz supor que utiliza-la foi fruto de cognição apurada. Digo isso, não por “corujice” de avô, mas por perceber em outras passagens a mesma maneira arguta de encarar as situações que lhe são novas, pouco comuns, ou que lhe falte conhecimento específico.

Bom... agora com “corujice”, afirmo que é por essas e outras que chamo a Katarina de Super Katá!

Que Deus lhe mantenha essa característica.

Amém.

Hegler Horta
Enviado por Hegler Horta em 25/09/2018
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