LORETO E MIGUELINA

Hora do almoço num sábado ensolarado, Loreto levou-me para saborear frutos do mar no Bar das Ostras (Badaosta na linguagem popular local), às margens da Lagoa de Mundaú, em Maceió/AL. Hoje o tradicional estabelecimento não mais existe, nem no Trapiche, para onde se mudara depois de uma enchente.

Casa cheia. Sem reserva, ficamos de pé por uns dez minutos até que desocupassem a próxima mesa. Lugar rústico, mas agradabilíssimo. Frequentado – fiquei sabendo na ocasião – por políticos, como o Senador Teotônio Villela, jornalistas e intelectuais. Loreto nem me deu chance de ver o cardápio. Antecipou-se a pedir o prato mais famoso e preferido pelos assíduos frequentadores: “camarão a moda das ostras”, elaborado sob a inconfundível receita de dona Oscarlina, a proprietária.

Camarões miúdos secos e nacos de queijo coalho como tira-gostos de entrada acentuavam a sede trazida de longe pelo o calor. A cerveja super gelada, agasalhada em estojo de isopor, descia bem enquanto nos refrescávamos com os ventiladores de parede. Sabendo de meu agrado por seus casos, Loreto caprichou em mais um para matar o tempo da espera.

Falou de dona Miguelina, pobre negra de Arapiraca, magra, que se sustentava principalmente vendendo lenha para as residências de fogão caipira. Sua faina era adentrar diariamente as capoeiras, cortar achas, enfeixá-las com cipó e transportá-las na cabeça do mato até a cidade. Uma rodilha de pano roto aliviava-lhe do atrito da lenha na cabeça. Também coletava folhas de tabaco refugadas na indústria de fumo da cidade e delas fazia tranças de mascar e fumo para queima em cachimbo, por ela mesma consumidas. Além disso, dona Miguelina era consultada por muitos que não desprezavam seu talento como raizeira e rezadeira.

Tirando a aristocracia endinheirada que não mostrava qualquer compromisso com a pobreza, os comuns tinham grande respeito e admiração por aquela esquálida, mas vigorosa figura local. Nunca casou, porém teve amásios com quem engravidara-se algumas vezes. Explicava com naturalidade e resignação a perda de seus filhos ainda bebês: “os filhos são assim mesmo; tem uns que vingam, outros não”. Contudo, orgulhava-se de ter tido leite suficiente para amamentar os filhos alheios. Loreto foi um desses amamentados por Miguelina. Sentimento guardado para nunca apagá-la da memória. Sempre que viajava a Arapiraca, fazia questão de visitá-la e presenteá-la com sabonete bem perfumado mais um frasco de leite de rosas.

Contou que, já morando e trabalhando em Maceió, certa noite perdeu o sono ao sentir um cheiro intenso de cachimbo fumegando. Até línguas de fumaça via dançando no ambiente sem identificar de onde partiam. Curioso é que sabia não haver fumante nem usuário de fumo de qualquer natureza nas vizinhanças de seu apartamento localizado no sexto andar. Da varanda da frente, tentava achar algum foco de folhas a queimar. Nada.

Noite mal dormida, com o sono intermitente, conseguiu chegar à manhã seguinte. Passando da hora de despertar, não fez café nem comprou pão. Estranhamente – pois não era seu costume - sentiu compulsiva vontade de tomar leite. Fez seu desjejum com uma banana e meio copo de leite gelado.

No trabalho, antes de tudo, passou pela cantina, sorveu uma xícara de café com leite, fora de seu costume. Proseou com colegas sobre assuntos técnicos e programação de trabalho.

Chegado a sua mesa, papéis e anotações costumeiramente desordenados mostravam algo volumoso por baixo. Loreto cuidadosamente levantou os papéis e visualizou um cachimbo artesanal feito com bambu e coco-naiá (babaçu), entupido de fumo queimado, ainda quente e exalando o mesmo cheiro que lhe atrapalhara o sono. Tomou-o na mão, fez algo como uma prece e guardou-o na primeira gaveta. Divagou, meditou por minutos e foi ao sanitário. Ao lavar a mão, identificou o sabonete como da mesma marca que costumava presentear Miguelina. Não resistiu. Ligou para a Prefeitura de Arapiraca (na casa de seus pais não tinha linha telefônica) e indagou sobre a anciã Miguelina. Falecera naquela noite. Seria sepultada no final da tarde.

Sem delonga, conversou com seu superior e obteve autorização para ausentar-se do serviço naquele dia. Passou na farmácia, comprou e incluiu na sua bagagem um sabonete da marca de sempre e um frasco de leite de rosas. Chegou a Arapiraca pouco depois do meio dia. Ligeira parada na casa de seus pais para tomar a bênção e, ato contínuo, dirigiu-se à humilde residência de Miguelina onde transcorria o velório.

Na entrada, cumprimentou amigas, vizinhas e parentes distantes. Miguelina, vestida de branco acetinado, portando véu, acomodava-se num caixão oferecido pela Prefeitura. Apoiado sobre a mesa era bem maior que seu franzino corpo.

Foi a seu lado que Loreto depositou o cachimbo, o sabonete e o leite de rosas, orando em voz baixa: “dê-me sua bênção, minha mãe-de-leite, leve estas lembranças com você. São simples e humildes como você sempre foi”. Ninguém, apenas ele viu um sorriso no rosto de Miguelina e dela ouviu: “Deus te abençoe, filho querido. Muito obrigado por vir”.

Acompanhou o sepultamento juntamente com muitos dos conterrâneos arapiraquenses, inclusive seus pais biológicos.

Pigarreei, enxuguei os olhos e lhe assegurei que um dia descreveria esse caso. Pedi e tomei uma cachaça para mudar de assunto e estimular o apetite, pois os camarões já estavam a fumegar sob nossas narinas.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 19/10/2018
Reeditado em 19/10/2018
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