LORETO E O AÇUDE

Não posso deixar escapar mais essa do Loreto, contada quando nos reuníamos numa festa de aniversário no apartamento de cobertura de Zelson Tenório, na Jatiúca, em Maceió/AL. O papo corria frouxo sem compromisso com o tempo, nem mesmo com a verdade absoluta. Zelson encheu-nos de alegria com anedotas envolvendo folclóricas artimanhas dos políticos nordestinos de outrora, mormente durante as campanhas eleitorais. Puxando para o lado sério, Zelson tocou na ferida endêmica do sertão nordestino, a seca. Segundo ele, passava da hora de se buscar ou desenvolver tecnologias e comprometimento da gestão pública para atacar essa penúria social nordestina. Até aquela data, o remendo amplamente usado e abusado pelos produtores rurais e moradores do sertão era o represamento de cursos d’água, riacho, córregos etc. Contudo, de eficácia duvidosa, uma vez que muito se perdia com a evaporação em razão das altas temperaturas ambientais e da infiltração no solo. A reboque dessa useira solução, o discurso político dominante era a promessa de construção de açudes e mais açudes no sertão. Nunca cumprida, diga-se de passagem. Loreto pegou o mote e contou mais um de seus arrepiantes casos.

Na Fazenda Califórnia, além de Arapiraca, havia na década de 40 um açude que parecia abraçar, em sua margem oeste, uma cinematográfica residência-sede da fazenda. Zeca Monteiro, o proprietário, admirador da arquitetura e do paisagismo, não economizou no bom gosto. Reproduziu algo que sonhava em seus devaneios, inspirado em cartões postais, revistas e álbuns que mandava comprar em Recife e Salvador. Não recebia visitas nem era dado a muita conversa. Não compartilhava seu prazer de viver.

Vestia-se como rancheiro americano: botas, polainas, calças justas, cinto e fivela largos, além do chapéu de aba quebrada na testa. Não dispensava um revólver Schimidt Wesson em coldre na cintura, mesmo em casa ou quando curtia o belo jardim-pomar margeante ao açude. Se teve esposa, ninguém a conheceu. Nem quando estava no leito de morte em Maceió. Filhos, tinha quatro, três homens e uma mulher. Mas, ninguém sabia se apenas de uma mãe ou várias.

Sua herança provocou enorme desavença familiar. O primogênito, Jeff, antecipou-se em se apossar da fazenda. Aboletou-se na casa com mulher e filhos, mesmo sem a concordância dos demais irmãos. Imitando a arrogância do pai, andava armado e sempre cercado de jagunços que também faziam a guarda da fazenda contra invasores.

Pouco adiantou. A terrível disputa levou ao fratricídio. Jeff foi assassinado em emboscada armada pelos irmãos e a disputa mudou de atores. Passou aos demais herdeiros, agora contando com o cunhado. Nunca conciliados, a fazenda descuidada, o pomar virou mato, o açude escureceu suas águas e encheu-se de folhas e mato sobrenadante, mais lembrando um pântano. A casa abandonada já não exibia beleza, mas tristeza e medo. Passou a ser ambiente mal assombrado e repleta de grandes morcegos. Nela se ouviam gritos, ranger e bater de portas e janelas, além de sombras a vagarem por seus cômodos.

Nunca conciliados, os herdeiros terminaram vendendo a propriedade. O novo dono, de imediato, mandou demolir a casa e drenar completamente o açude. No fundo da represa, em meio à lama, foram achadas várias ossadas humanas, algumas inteiras e outras aos pedaços. As autoridades policiais foram informadas e provocadas a adotar providências à identificação dos restos encontrados. Havia até carcaça de uma criança.

O trabalho de identificação levou tempo na falta de técnicas biológicas para esse fim. Mas, ao final, foi possível afirmar que as ossadas teriam pertencido a cinco corpos de mulher, sendo uma ainda adolescente e uma outra criança com idade entre cinco e seis anos.

A provável motivação para as mortes e sepultamento no fundo do açude foi obtida a partir de interrogatórios com os ainda vivos trabalhadores da fazenda na época de Zeca Monteiro, assim como de seus descendentes e amigos sobre o que sabiam ou teriam ouvido.

Encerrado o inquérito, concluiu-se que Zeca Monteiro não compartilhava a cama com mulheres que tivessem experimentado outro homem antes dele. Tampouco com as que já houvessem parido. Dessa forma, as mulheres que dele se engravidavam era sumariamente assassinadas e jogadas no fundo do açude assim que a criança atingisse a idade de cinco para seis anos.

Ficou sem explicação razoável o corpo da criança na idade em que procedia a eliminação da mãe. Segundo depoimento da neta de uma das empregadas da fazenda, corroborado por parentes de outra empregada, teria ocorrido um caso em que a criança assistira ao assassinato de sua mãe e vendo seu corpo amarrado e preparado para ser jogado no açude, caiu em desespero. A criança gritava aos prantos implorando para que tal não ocorresse. Embora não se tenha presenciado, a criança provavelmente fora silenciada, morta e sepultada da mesma maneira que a mãe. Pois nunca mais fora vista.

Roberio Sulz
Enviado por Roberio Sulz em 11/11/2018
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