Passageiro da noite

Passageiro da noite

Após enfiar as cédulas no único bolso confiável, sorri, afinal saíra o pagamento do mês, recebera o saldo do salário, menos os vales e os descontos na folha. Lembra as contas pra pagar na mercearia do Zé entre outras compras, os fogos comprados para o último jogo da seleção.

Com o nascimento de mais um filho, o salário família, lhe garantira um valor mais alto, quase nada, mas já livrava o do cigarro.

Após horas no ponto do ônibus, enfim chega em casa bastante suado.

O cheiro da pinga chega ao nariz de Zefinha que resmunga alguma coisa, continuando a engomar a roupa para ser entregue pela manhã.

Mexe na panela, põe alguma coisa no prato e senta-se frete a TV, enquanto sente o volume das notas emboladas engordando o bolso.

O jornal está no fim, a última reportagem toca-lhe fundo, quer salvar as criancinhas da fome, pede a alguém para escrever o número da conta, ira fazer uma contribuição, vai depositar no outro dia na lotérica, Imagina o valor e até conta nos dedos.

Começa o horário político, o cansaço o mantém preso à cadeira.

Sente-se importante ouvindo aquelas pessoas lhe pedirem votos, e lhes dirigirem as palavras como se fossem velhos amigos, aparecem uma a uma as velhas raposas com suas novas artimanhas, as cenas repetem-se, e a miséria do povo vira bandeira de luta.

A favela aparece mais bonita no vídeo feito a capricho. Soluções não faltam: dívidas pagas, salários aumentados, infra-estrutura, trabalho, saúde, educação, segurança.

Uns falam demais, outros sem tempo, mal falam o seu nome.

- Vote em fulano de tal, contribua para o partido P, deposite sua confiança no PP, este se filie ao PPP...

Aperta a grana no bolso como a protegê-la das mãos que ameaçam sair da tela a qualquer momento, não se deixaria enganar, já até regularizara o título, não tinha ainda a certeza em quem votaria, mas já decidira para quem não votaria e para quem iria o voto da mulher.

A esposa se aproxima pedindo dinheiro. Enfia a mão no bolso e vagarosamente, pega as notas, lambe os dedos e passa uma a uma sem qualquer pressa, seguindo um ritual como a despedir-se de cada uma, valorizando cada cédula, entrega a maior parte para ela, ficando com o suficiente para a condução.

A miséria do povo continua sendo mostrada na TV, por instantes esquece a sua dura vida de peão e se deixa envolver pela ilusão de uma boa vida mostrada nos vídeos. Um dia ainda mudaria de vida, acertar os números da mega sena é a sua maior aspiração, nunca deixa de fazer uma fezinha, seria mais fácil deixar de fumar, vivia a cantarolar o refrão daquela canção:

“ Quando será o dia da minha sorte, sei que antes da minha morte eu sei que este dia chegará, quando estava na barriga da minha mãezinha... ”

Toda semana saía para alguém, bem que poderia ser ele um dos felizardos, também se achava filho de Deus, prometera que se ganhasse, destinaria uma boa parte para as obras de caridade.

Quando lhe faltava inspiração, inventava algum palpite: já tentara com a idade dos filhos, datas de nascimento, terminações de notas, até com as placas do carro do patrão. Adormecido ver-se rodeado de minas semi-nuas sorridentes e tentadoras lhe chamando pelo nome...

É a mulher que o chama, manda desligar a Televisão para não gastar energia, a conta veio muito alta, e ainda por cima pagaria com multa por atraso o que a tornaria ainda mais cara.

Não podia aumentar o preço da lavagem de roupa, a dona lá falou que estava tudo congelado, que o país estava em crise e coisa e tal. Só não conseguia entender porque os preços da água da luz, e do gás aumentavam sem parar.

Ouve as queixas com paciência, afinal são sempre as mesmas, quando aparece uma nova, logo se incorpora ao rol das já conhecidas. Resignado, diz para si mesmo que ela tem razão...

Entra a próxima novela, a mulher sempre ocupada não para ver nenhuma, ele assiste a das nove, mas o programa seguinte é sagrado, não perde nunca a não ser que em outro canal passe futebol com seu time em campo. Comenta as últimas cenas, e dá sua opinião sobre o que irá acontecer nos próximos capítulos, nada o incomoda, acende um cigarro e aspira bastante para prolongar o prazer.

A sua maneira é feliz. Não tem problemas com o fisco, nem com o leão...

A falta de combustível não altera a sua rotina, se o gerente pagara uma fortuna de IPVA, imaginou o que o patrão gastou com os tantos carros da família...

No domingo anterior, fora na casa dele para lavar os carros, além de ganhar uma grana extra, continuava nas boas graças do patrão, com a crise já haviam sido demitidos vários empregados e ele não queria correr o risco de perder o trabalho.

Até esquecera a mordida do cachorro, afinal nem doera tanto, a patroa chamara o doutor que veio examinar o cão, o bicho parecia ter sofrido algum tipo de trauma ao passar por um momento de estresse. Se desculpara com a patroa, reconhecendo que o seu animalzinho não tivera culpa, o peludo até foi parar na clínica...

Espreguiça-se demoradamente fazendo ranger a cadeira que ameaça desmoronar, já rebatera os pregos, mas estes insistiam em sair.

Começa a chover, e durante a noite as goteiras pingariam pelas frestas das telhas aumentando o frio. Já imaginava pela manhã, tendo que sair com os sapatos na mão e com água no joelho. Esquece a chuva, e ver a TV sai do ar.

Após o banho, se ajeita na cama, onde a companheira, pacientemente o espera para uma viagem alucinante.

 

Paulo Ivan
Enviado por Paulo Ivan em 13/11/2018
Reeditado em 01/05/2020
Código do texto: T6502185
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