O AMOR É NU

Eu não era de acordar cedo. Meu pai, sim. Acordava muito cedo e ficava andando pela casa. Quando se irritava com o silêncio, começava a fazer barulhos. Sabíamos, então, que era preciso acordar. Ele funcionava como um despertador… Tanto é que, em casa, nunca perdemos horários. Hoje, passados muitos anos, perdi o sono. Durmo pouco, apesar do remédio.

Quando o sono acaba me levanto. Nem sempre já é hora de me preparar para o trabalho. Faço meu café e vou para a janela. Melhor quando o dia já está claro, mas, em tempos de horário de verão, ainda muito escuro. Tomo meu café devagarinho, apreciando o amanhecer e separando, pelo ouvido, todos os sons. Vem uma vontade de planejar, pensar em coisas futuras. Afasto essa ideia (de um tempo pra cá, desisti de planos) e penso em pessoas. Hoje, em particular, pensei numa amiga. Não sei se posso dizer que ela seja amiga de muitos anos ou se é uma amiga recente. Vou explicar o porquê disso.

Eu a conheci no trabalho há muitos anos, nem sei precisar quantos. O problema é que, a princípio, não houve entre nós qualquer empatia. Não sei dizer se nos gostávamos ou se convivíamos em harmonia. Trabalhávamos na mesma rede; eu professor, ela, num cargo de gestão. Era uma antipatia gratuita, sem um motivo aparente. Ou melhor, naquela época, a minha arrogância, a mania que eu tinha de achar que eu era, de algum modo, superior as outras pessoas fazia-me acumular antipatias. É bem isso.

Devo ter perdido oportunidades maravilhosas de convivência. Hoje, refletindo um pouco mais, penso que essa arrogância sempre foi um escudo. Ela me protegia. Eu não me desnudava. Não demonstrava sentimentos. Na verdade, eu tinha medo. Medo de gostar demais, medo das decepções, medo das perdas. O medo ficou tão grande que algumas pessoas passaram pela minha vida, mas não ficaram.

Os anos correram. Nos reencontramos. Eu já estava mais machucado pela vida. Convivemos durante algum tempo, pois ela participou de um curso que eu ministrava naquela época e que era oferecido apenas a professores de língua portuguesa. Lá estávamos nós e aquela sensação ruim, aquele incômodo, voltaram e eu tive de ressignificar nossa relação. Ficaríamos juntos um bom tempo, durante algumas tardes, semanalmente. Era preciso reatar os nós, deixar a arrogância de lado e construir uma amizade. Acho que conseguimos. Estudamos muito e demos boas risadas, também.

Novamente o tempo correu. Novo reencontro. Eu fora devolvido à escola, depois de mais de quinze anos. Cheguei absolutamente fora de controle, mas ela me acolheu. Mostrou-me, a seu modo, que seria muito difícil, mas não seria impossível. Os dias foram passando e eu “grudei” nela, literalmente. Muito choro e muito riso. Fiquei pouco tempo. Novamente fui chamado a trabalhar no local de onde viera.

Recentemente, há pouco mais de um ano, nos encontramos de novo. Agora seria um tempo longo, pois eu teria de ficar na escola. Eu ficaria na escola, mas não seria professor. Foi difícil lidar com isso, mas ela novamente me ajudou. Deu-me colo mais uma vez. Eu fiquei feliz por ter resgatado nossa amizade e também pela oportunidade de mostrar a ela que eu não sou tão mau assim. Deu tempo? Sim, deu. Porém, desta vez, foi ela quem saiu. Chegara a aposentadoria.

Dia desses, tomamos um café e conversamos apenas sobre nós. Deixamos a emoção nos contaminar e nos desnudamos. Afinal, “o amor é nu. Quem não quiser amar vista-se!”

Peluro
Enviado por Peluro em 04/12/2018
Reeditado em 06/12/2018
Código do texto: T6518922
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