"Vidinha de merda"

Eu tenho um amigo, desses amigos de verdade que são uma raridade hoje. Ele passa muito tempo desaparecido, ora do ar, desliga até os telefones, Sai completamente de circulação. É muito encucado e não faz segredo disso. É bem de vida (expressão muito ysada no sertaçao), bem casado, os filhos formados e encaminhados, apartamento confortável, carro do ano e um bom dinheiro aplicado nos bancos. Talbé goza de boa saúde e vive bem com a mulher. Um cara que tem de tudo para ser feliz. Co metade disso a maioria das pessoas estaria feliz da silva conceição. Ele não, nunca está feliz e diz isso publicamente. Há que diga que ele está afrontando a sorte e cometendo o pecado da ingratidão.

A mim ele sempre escancara suas mágoas da vida. Reconhce que é um privilegiado. Mas diz em alto e bom som: - Jamais vou me conformar com esta vidinha de merda. A cantilena é sempre a mesma: - Bicho, não tenho cicatrizes para acariciar com orgulho e sudade. Não tenho recordações de perigos, nunca corri riscos, não vivi aventuras. Sempre fui certinho. Sinto, sinto falta dos pecados que não cometi, das merdas que não fiz, perigos que não enfrentei, tentações a que não fui submetido, amorese desamores, boemia, farras... Fiquei sem história. Que tenho para recordar, cabra véio?

Não digo nada. Apenas ouçoa latromia e beberico a minha lapadinhade cachaça comum, tirando o gosto com uma tripinha velha e não confiável. Sim, porque quando me encontro com esse sujeito é sempre nu boteco escondido, onde não tem a Pitu Gold e nem uma cabidela, um sarapatel, uma agulinha... O cara quer recuperar o tempo perdido, curtindo boteco mincho. Nada de discriminação, mas dar uma de pobre depois dos setenta é foda, né mesmo? Ele faz mais, manda botar be alto músicas de Lindomar Castilho, Waldik Soarano, Núba Lafaiete e uma que ele adora, de um cara que canta uma música que começa assim: "Esta npite eu queria que o mundo acabasse....". Econtinua desfiando o rosário de mágoas: - Nunca joguei bola descalço, nem tomei banho em barreiro, nem roubei frutas na feira, nunca joguei sinuca, nem tampouco frequentei as putas...

Quanto o sujeito se embebeda, eu coloco ele num taxi (não vem no seu carro, prefere bancar oliso), dou o endereço ao taxista, pago a corrida e ainda a coanta do boteco. E respiro aliviado.

Depois de alguns dias recebo a compensação, um livro e um litro de uísque do bom. Mas ainda é pouco para apagar a chateação de ouvir as latromias desse amigo. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 08/12/2018
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