A CEBOLA

Quando saí de Santa Maria, nos idos dos anos 90, levei comigo apenas um fogão, uma geladeira, minhas roupas e um equipamento odontológico completo que tinha comprado em incontáveis prestações. Era até então, o meu patrimônio. Havia passado num concurso na prefeitura de Taquara, cidade próxima a Porto Alegre.

Morei alguns meses num hotel e depois aluguei um apartamento no centro da cidade onde instalei os tais eletrodomésticos.

Aos poucos, conforme as possibilidades financeiras permitiam, fui comprando o restante dos móveis, isto é, um sofá, uma cama e uma televisão 20 polegadas.

Estabelecido na cidade vivi a vida como vivem todas as gentes. Fazia aquilo que se faz no cotidiano de cada dia sem nada de extraordinário que mereça ser comentado. Apenas vivia.

Certa vez recebi visitas e resolvemos fazer uma pizza num sábado à noite. Fui ao mercado comprei os ingredientes, massa, presunto, queijo, maionese, ketchup, orégano, tomate, cebola. Tudo que precisava para se fazer uma pizza de presunto e queijo.

No domingo de manhã, fui pegar o leite para fazer o café, e abro um parênteses para dizer que como eu almoçava e jantava sempre num restaurantezinho próximo não comprava nada para comer em casa, fecho parênteses. Leite era o único alimento que tinha. Abri a geladeira e vi que sobrara uma cebola das compras do sábado. Pensei que poderia usá-la quando fizesse uma outra pizza, uma salada ou um bife.

Nos 12 meses seguintes que lá morei, nunca fiz um único almoço ou janta. Para se ter uma ideia o botijão de gás que veio junto de Santa Maria durou exatamente dois anos.

Os únicos alimentos que ficavam guardados na geladeira era o leite para o café e a cebola. E desta forma passaram-se os meses.

Acordava de manhã, ia pegar o leite e dava de cara com a cebola. Voltava do trabalho a noite e estava lá a cebola. Depois de alguns meses comecei a lhe dar bom-dia, mas ela, fria como uma cebola de geladeira, não respondia. Adotei-a como minha mascote, uma filha adotiva. Sentia-me um Tom Hanks numa ilha deserta, a cebola era o meu Wilson.

Em julho do ano seguinte, fui embora para Laguna. Eu, meus moveis, meu consultório e a cebola.

Ela permaneceu na geladeira mais um ano, até que numa manhã de um dia qualquer, fui pegar o leite, o presunto e o queijo para o café, sim já tinha presunto e queijo, e percebi duas hastes verdes saindo de sua parte superior. Ela estava brotando. Espantou-me que mesmo no frio escuro de uma geladeira que poucas vezes era aberta ela teve a força de brotar.

Uma guerreira. Paciente e resignada, aguardou valente o seu tempo até o momento em que a força irredutível da natureza numa ânsia ardente, que atiça os hormônios e prepara os organismos para a perpetuação das espécies, tomou conta de seu pequeno ser com tal intensidade e tamanha força que só acontece nas coisas que precisam acontecer. Era a vida em seu movimento mais belo manifestando-se no vegetal abandonado na geladeira.

Que mais poderia dizer desta heroína? Confesso que fiquei emocionado. Meu bebê.

Me doeu o coração ao lembrar que por pouco, muito pouco, não virou ingrediente de pizza.