Falando de flores. Pois é, Bibi.

Acabo de chegar em casa e, como de costume, acesso informações pela internet. E soube que Bibi Ferreira resolveu partir. Não estou conseguindo, ainda, organizar o pensamento, os sentimentos, as memórias.

Muitas são as minhas memórias de vontade. Vontade de ter assistido Gota d’água nos anos 70, por exemplo... e eu não pude.

Naquele tempo, no meio da insanidade da ditadura, o pensar, o agir e o acreditar nos mantinham unidos. O pensamento crítico formava uma espécie de irmandade que teimava em acreditar na vida e em dias melhores, em novas primaveras. Eu sonhava em assistir Gota d’água, mas, dinheiro nenhum. Nem poderia eu, naquela adolescência, ter o descaramento de pedir algum dinheiro a um pai desempregado e doente, doentíssimo, sem nenhuma chance de conseguir trabalho. As dívidas só faziam aumentar. Como eu poderia ir além do desejo de entrar num teatro... impossível.

Era um tempo de crença, na aposta na intelectualidade, na expressão da cultura, na partilha do conhecimento... e eu me apaixonava cada vez pelos expoentes da literatura, do teatro e da música.

Coisa difícil de explicar para quem não viveu a época. Sabíamos que os nossos inimigos eram os donos do poder, era o capital externo e também sabíamos que era necessário questionar, transgredir, tirar com força todas as mordaças das nossas bocas. A vida gritava, se impunha, não aceitando os eternos nãos que o sistema, a família e a igreja nos impunham.

Há um ano e meio fui com meu marido assistir Bibi interpretando Sinatra aqui em Florianópolis. Foi a noite mais vibrante, mais significativa, mais feliz da minha vida. Eu podendo ir ao teatro e assistir a Bibi na quarta fileira! Era um misto de magia, conquista, direito, o mais absoluto prazer em vê-la tão de perto e ela fez questão de homenagear Piaf, claro, e pos-se a cantar La vie em Rose. Eu não sei, nunca soube, exprimir a minha felicidade contida naquele momento. Tratava-se de um resgate cultural que me estava recalcado havia décadas.

Pela sua idade cronológica, Bibi, lógico que eu sabia que você logo partiria. Mas eu tinha medo desse momento. Até porque estamos vivendo um tempo nefasto, amargamente escuro e com pouquíssimas possibilidades de nos mantermos com algum sentido de ética.

Tempos em que o ódio venceu com tal força que, do céu, despenca o escárnio com que resolvemos tratar as coisas mais sagradas da vida: fogo em museu, lama tóxica arrancando furiosamente vidas e almas, meninos desportistas que morrem nos seus campos de sonhos, projetos de destruição da dignidade humana, projetos ditos na legalidade de assassinatos de pretos e pobres. Tempos de direito a educação apenas para poucos. Tempos de Jesus empoleirado na goiabeira e de sandices que fariam qualquer mentecapto negar sua condição de ser minimamente pensante. Nesses tempos de rancor declarado, de alma pequena, de se deixar a bunda exposta na janela para passarem a mão nela... Bibi, você foi embora! Como grande reserva moral, foi muito prá você ter que se dar conta de todo o apodrecimento insano que mata esse nosso país. É muito prá muitos de nós. Está insuportável viver. Nós, que tivemos sonhos, que buscamos oxigênio, esperanças, que tínhamos prazer em partilhar pequenas conquistas e alegrias... Nós, que acreditávamos no país... me ajuda, Bibi. Me ajuda a deixar o meu coração em paz, que ele é um pote até aqui de mágoa.

Siga em paz, grande Bibi Ferreira. Siga em frente com todo o seu bom humor. Não se esqueça de comer pão com manteiga, que você adorava, com São Francisco, e cante Piaf para ele e para todos os anjos, com todo o talento e energia que tem. Que eles cantem La vie em Rose, levantem os braços e, sorridentes, vibrantes, façam:

Lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá...la vie em roooooooose

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 13/02/2019
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