Detalhes

No quarto havia só o passado, uma cama de solteiro, um computador sobre uma mesa e roupas velhas como ele por dentro. Ao redor o ar era sufocante, despido de qualquer ausência de alegria e como tudo que restava, nada era necessário para a indiferença que pairava sobre o mundo exterior.

Quem entrasse ocasionalmente naquele lugar, não poderia decifrar as histórias daquelas paredes, daquele chão imundo. Somente olhos treinados pela dor poderiam sentir o quanto era difícil viver ali, onde as memórias eram marcadas por abismos sentimentais e pelos desajustes de uma mente nada equilibrada.

Havia em um canto, um homem, com seus livros, sua magreza e recordações, mas não havia nesse mesmo canto um bocado de vida. Outrora, se o visitante se esforçasse um pouco, poderia sentir que nos restos daquele ser, havia amor, não aquele amor carnal tão comum e sim o amor que muitos deixaram para trás por alguns trocados.

Com um pouco mais de atenção o visitante poderia notar também aquela aura carregada de contradições. Ao mesmo tempo que o computador dava um toque de modernidade, a velha ampulheta com suas areias do tempo que dormia como enfeite empoeirado ao lado da infernal máquina do futuro, versava sobre a decadência que ele respirava.

Eram detalhes talvez insignificantes para olhos não acostumados com o caos, com sentimentos fortes e marcas que só o habitante do local poderia decifrar. Realmente eram detalhes insignificantes, nada importante para os raros visitantes que passaram por ali. Tudo até combinava com o homem mudo e sem expressão que aparentemente imóvel lia Tabacaria de Fernando Pessoa sonhando que o mundo poderia ser mais simples.

No entanto, havia algo que havia passado desapercebido nesses detalhes, algo que olhos não treinados tinham deixado escapar. O homem sorria por dentro, não era sarcasmo, nem indiferença, era apenas um estado discreto de satisfação. Estava satisfeito com o que tinha. Poderia ser inquietante perceber que ele sorria por dentro, por isso escondia, fingia ser também indiferente diante do abandono que já impregnava sua carne, sua alma e seus dias.

Paulo Raven
Enviado por Paulo Raven em 26/03/2019
Reeditado em 13/06/2020
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