Publicações anteriores desta série:

  Crônicas de Brandão - Introdução
  Crônicas de Brandão - 1) O Mico da Lanchonete
  Crônicas de Brandão - 2) O Brado Retumbante
  Crônicas de Brandâo - 3) A Gincana da Torta de Maçã
  Crônicas de Brandão - 4) RRRaii RRRoberrrt!!!
  Crônicas de Brandão - 5) Putz...Melou!!

CRÔNICAS DE BRANDÃO
 

6) Perseguindo a Polícia

 
       Brandão deixara a noiva em Brasília com a promessa de que após o término do programa no exterior se casariam. Mas, apesar de estar cercado por colegas, amigos e garotas ansiosas por sua atenção, a saudade da noiva o fazia sentir-se só.

       A vida em Columbia deixava aos estudantes períodos de folga da azáfama acadêmica, ao final de cada módulo do curso. No primeiro desses períodos Brandão veio ao Brasil, casou-se, curtiu sua lua de mel em Curaçau e retornou a Columbia com sua mulher antes do final das férias. Já não estava mais só, para decepção das universitárias latinas soltas na liberdade da vida longe de casa.

       Foi também num desses períodos de folga que Brandão, com a esposa recém-chegada, juntou-se a nós - minha família e eu - numa viagem às montanhas da Carolina do Norte. Eu havia adquirido, logo que chegara, um Impala 72, com três anos de uso, em perfeitas condições, que, à época já incorporava todos os itens de conforto, segurança e potência que os carros brasileiros só depois de muitos anos viriam a incorporar. Eu estava ávido para testar seu desempenho na estrada. A viagem à Carolina do Norte foi a oportunidade.

       Oito e trinta da manhã, malas prontas, carro abastecido, checada a água, o óleo e os pneus, embarcamos para nossa primeira aventura estrada a fora. Percorridos os primeiros quilômetros na autoestrada já foi possível sentir a segurança que o carro inspirava e sua sede de velocidade. E eu dei a ele o que estava pedindo. Acostumado às marcas de velocidade máxima nas rodovias brasileiras, que, nos anos 70, ainda eram apenas sugestões, já que o policiamento ostensivo era precário, deixei-me seduzir pelo prazer da velocidade bem acima do limite estabelecido para aquela autoestrada.

       Em pouco tempo já estava sendo seguido por um carro da polícia, sirene ligada e luzes vermelhas, brancas e azuis girando no teto. Já tinha aprendido que este roteiro era uma ordem para que eu parasse meu carro no acostamento. Foi o que fiz. Estacionando atrás de mim, o policial se dirigiu em direção à minha janela solicitando que eu permanecesse no carro.


       - O senhor sabe que neste estado a velocidade máxima nas rodovias é de cinquenta e cinco milhas por hora? - disse em seu idioma o policial. Era uma forma polida de dizer: “O senhor será multado por dirigir em excesso de velocidade! ”. Antes que eu tivesse tempo de pensar em que responder, Brandão, lá de trás esticou o pescoço para a janela da frente e respondeu em seu Inglês perfeito e imponente:

       - Esta senhora – disse, apontando para minha mulher ao meu lado, está precisando urgentemente de um banheiro. Infelizmente não há como retardar a chegada a um sanitário para que obedeçamos ao limite de velocidade. O senhor poderia nos ajudar?

       - Sigam-me! - disse o policial correndo de volta para sua viatura.
 
       De sirene ligada acelerou o que pode. Nós o seguimos. Esta foi a primeira vez que eu pude sentir toda a adrenalina de dirigir uma lancha americana de quase 300 cavalos a mais de 130 km por hora, em perseguição a uma viatura policial americana. Naquele momento jamais poderia imaginar que haveria outra. Mas houve.


       Em pouco tempo a viatura derivou para uma das áreas de descanso da rodovia, muito comuns, já naquela época, nas autoestradas. Minha mulher saiu rapidamente do carro e dirigiu-se apressadamente ao banheiro feminino.

       Enquanto esperávamos, Brandão apresentou-se ao policial e detalhou a ele as coisas interessantes acerca da cultura, da história e da geografia do Brasil. O policial parecia fascinado, não só com a excentricidade do conteúdo da fala de Brandão, mas, principalmente, com o brilhantismo com que tal conteúdo era expresso na língua mãe do policial.

       Com um rosto demonstrando alívio, minha mulher finalmente voltou do banheiro, agradeceu com um sorriso ao vigilante rodoviário e tomou seu lugar no assento da frente do Impala. Fiz o mesmo. Enquanto eu ligava o motor do carro, Brandão ainda finalizava seus elogios à polícia rodoviária que, além de zelar pela vida dos viajantes, ainda lhes dava pronta assistência quando requisitada. Agradeceu polidamente mais uma vez o policial e retornou ao carro.

       Nada de multa! O protagonismo teatral fora perfeito; e de improviso. Além de evitar a multa, Brandão inflou o ego do policial e fez ver a ele como os brasileiros são simpáticos e inteligentes, e como o Brasil tem história, cultura e atrações turísticas que valem a pena conhecer. “Ainda vou conhecer este pais”, deve ter pensado o policial enquanto voltava à viatura, sem entender bem o que estava fazendo ali. Dentro do Impala a euforia, as risadas, e os comentários jubilosos sobre o feito duraram até a fome chegar.

 
***
 
       Talvez eu devesse concluir esta narrativa aqui. Mas este episódio teve uma extensão interessante um ano depois, que vale a pena relatar.

       Brandão já havia retornado ao Brasil após interromper o curso por total falta de recursos. Contava com uma bolsa de estudos que lhe fora prometida pela empresa pública em que trabalhava em Brasília. A bolsa não saiu. Pelo menos não saiu a tempo de permitir que a absoluta moderação financeira da família Brandão na América ensejasse a espera de sua liberação.

       Assim, quando o estágio, requisito do curso de Administração Internacional, me foi designado para uma empresa de gases industriais na Pensilvânia, Brandão já não mais pertencia ao grupo de estrangeiros na Universidade da Carolina do Sul.

       Meu companheiro de estágio – Gilson, também brasileiro - e eu, viajamos à Pensilvânia num domingo, para que pudéssemos atender à primeira entrevista antes do início do estágio, na segunda-feira cedo. A entrevista era necessária, já que o estágio implicaria na transferência das famílias – Gilson era casado também – para a cidade de Allentown. A empresa não poderia arcar com tais despesas e comprometer-se a aceitar os estagiários sem antes conhecê-los.

       No aeroporto da Filadélfia, onde aterrissamos, alugamos um carro que dirigi até Allentown, a algumas milhas dali. Demos entrada no hotel cuja reserva já havia sido feita. Era cedo, teríamos tempo para um passeio. Decidimos conhecer Filadélfia, e jantar por lá mesmo. Chegaríamos de volta ao hotel cedo o suficiente para um sono reparador que nos desse a lucidez e a energia necessárias para um bom desempenho na entrevista do dia seguinte.

       Assim foi feito, ou quase. A entrada para o centro de Filadélfia, de quem vem de Allentown, após percorrer uma longa avenida de acesso, é guarnecida com um obelisco gigantesco, a torre do relógio da prefeitura de Filadélfia, que desponta de uma praça rotatória, em que a avenida de onde vínhamos encontra outra que a cruza perpendicularmente, formando quatro ângulos de noventa graus, tendo como vértice comum o prédio com o obelisco. Para garantia de que reconheceríamos a saída quando retornássemos, o obelisco, visível de vários pontos da cidade, seria nossa referência. Com isso concordamos Gilson e eu. Afinal, o GPS ainda não havia sido integrado aos instrumentos de bordo dos automóveis, nem desenvolvido como aplicativo para os telefones móveis que sequer existiam como meio de comunicação popular.

      Após algumas peripécias inocentes e um jantar sem muito glamour, decidimos que já era hora de voltar.
“O obelisco, onde está o obelisco? Ah! Lá está ele! ”, observei, sentindo a segurança de quem encontrou a saída de um labirinto. Rumo a ele, alcançamos a praça de onde emergia, fizemos o contorno da rotatória e seguimos pela avenida de acesso, agora em sentido oposto, em direção ao nosso destino.

       Tranquilos, discutíamos as estratégias para a entrevista da manhã seguinte quando Gilson, preocupado, observou que já se passara muito tempo desde que saíramos da rotatória para a avenida de acesso. O início da rodovia para Allentown, naquela altura, já deveria ter sido alcançado. Tentei acalmar Gilson, dizendo que não era possível estarmos perdidos, já que havíamos obedecido, à risca, a referência do obelisco. De fato, me lembrava de ter visto a torre, pelo retrovisor, depois de rodar alguns metros pela avenida de acesso, da mesma forma que o tinha visto, de frente, quando estávamos chegando à cidade.

       Mas, o tempo passava e, quanto mais nos distanciávamos mais o cenário parecia totalmente desconhecido para nós. Rodamos mais uns dez minutos e então nos convencemos: estávamos perdidos!

   
       Peguei o primeiro retorno e voltamos. Após vários quilómetros de apreensão, lá estava o obelisco. Então percebemos nosso erro. As avenidas que se cruzavam na rotatória do obelisco eram muito semelhantes. Tínhamos tomado a avenida Norte-Sul e não a Leste-Oeste, por onde tínhamos vindo. A semelhança entre os quatro lados da torre, cada um voltado para um dos quatro setores formados pelas duas avenidas perpendiculares, e a aparência desses quatro setores, idêntica aos olhos de qualquer forasteiro, principalmente à noite, nos havia traído.


       A noite avançava. Havíamos gasto quase uma hora sem progredir um metro sequer em direção a um sono tranquilo. Tínhamos uma viagem pela frente. Não dava para passear mais. Seguro de que agora estávamos no caminho certo, pisei fundo no acelerador.

       As luzes e a sirene de uma viatura policial não demoraram a surgir. Gilson se apavorou. Nunca tinha passado por tal experiência, pelo menos no exterior. Além da multa, podíamos esperar mais perda de tempo e menos lucidez e energia na entrevista da segunda-feira.

           A atuação de Brandão na viagem às montanhas da Carolina do Norte me veio imediatamente à cabeça. “Deixe comigo”, eu disse, “vamos sair dessa”.        

       Estacionamos no acostamento. O policial se aproximou:


       - O senhor sabe que a velocidade máxima no estado da Pensilvânia é de cinquenta e cinco quilómetros por hora? - Até hoje não entendo porque mencionar o estado, já que a velocidade máxima era a mesma em todas as autoestradas do país. Mas era um refinamento, já que as regras de trânsito eram estaduais.

       Já com um pouco mais de traquejo na língua inglesa, respondi ao policial com segurança:

       - Senhor, o meu colega aqui está precisando urgentemente de um banheiro. Não dava para andar mais devagar. O senhor pode nos ajudar?

       - Siga-me, disse o policial correndo para sua viatura.

       Gilson não entendeu muito bem o que se passava. Na correria, estrada a fora, atrás do policial, expliquei tudo a Gilson. “Não vamos pagar multa alguma”, disse eu ao final.

       Ao chegarmos à área de descanso Gilson saiu rapidamente do carro e correu para o banheiro. Tentei entreter o policial com explicações sobre nossa origem, sobre o que fazíamos na Pensilvânia e sobre o programa de Administração Internacional que estávamos cursando. Gilson finalmente apareceu. Agradecemos ao policial pela sua atenção ao que ele respondeu ser tal assistência parte de suas responsabilidades.
Já voltando ao nosso carro alugado ouvimos o policial:
       
       - Esperem só um momento, por favor - retirou do bolso do casaco um bloco de papel, escreveu algo no formulário que me entregou dizendo:


       - Esta é a sua multa pelo excesso de velocidade. Você tem dois dias para pagá-la no juizado de trânsito deste distrito. Boa viagem e andem devagar!

       Ah Brandão... que saudade!