DE TANTO SAMBAR

O plantão daquela quarta-feira de cinzas seria absolutamente igual a tantos outros, com dezenas de foliões lotando as enfermarias e corredores do pronto-socorro, após dias de farras e bebedeiras, se não fosse a chegada da morena, de cabelos longos e encaracolados, com jeito de moça recatada, mas, que, também depois de longas noites atrás dos trios elétricos no litoral, trazia consigo olhar de mar em ressaca.

Em transe foi conduzida pelo acompanhante – namorado, marido ou ficante? – até a maca onde eu já estava preparando-lhe o repouso merecido a todos que durante cinco dias se lançam na avenida, nos sonhos, nos braços da vida e, somente no último dia, quando não há mais o que esquecer ou confessar, se vê obrigado a parar, descer do trio, beijar o chão e começar tudo de novo.

O olhar dela era infinito. De alguém que acabara de se encontrar depois de muitos carnavais fora das alegorias que sempre a mantiveram viva. Enquanto lhe preparava a injeção, murmurava encolhida na cama: “O sol é seu, o som é meu, quero morrer, quero morrer já, o som é meu, o sol é meu, quero viver, quero viver lá.” Embora a energia do samba ainda estivesse ali naquela alma, o corpo já não acompanhava mais, estava exausto, sucumbira após tantos dias de samba desenfreado.

O acompanhante ria da moça. Parecia compactuar com seus devaneios, com sua loucura e arrebatamento. Diferente dos demais atendimentos, ela não tinha sinais quaisquer de exagero de bebida ou droga. “Quero morrer, quero morrer já, o som é meu, o sol é meu...”, a moça cantava baixinho, de olhos fechados e expressão feliz. Fiquei intrigado e comecei a resgatar na memória a letra daquela canção, que me parecia familiar. Pergunto-lhe onde dói e ela diz que o corpo inteiro não lhe obedecia mais. Daí, o acompanhante explica que a bela morena, que escondia a estatura num salto de 15 cm, estivera nos últimos cinco dias lançada aos encantos do samba, despreocupada, sóbria e feliz, sem imaginar o que lhe causariam horas e horas de rebolados e remelexos.

Começo a lembrar da letra da canção que ela teimava em não esquecer... “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu, quem já botou pra rachar, aprendeu, que é do outro lado, do lado de lá do lado que é lá do lado de lá”. Pois que a moça não poderia mesmo deixar Caetano partir assim, de qualquer jeito, sem beijos e despedidas, depois de dias e noites do lado de lá da vida. Desidratada e com fortes dores musculares, a moça ficou internada por três dias. De tanto sambar. Pode-se dizer assim.