Cinzas do Passado

Cinzas do Passado

Ele acabou de partir. Não foi uma partida afoita, intrépida ou dolorida. Foi simplesmente um desprender de si próprio, para deixar o local sem ousadia. Abriu a porta, pisou no degrau suavemente, como se esse iria esfacelar-se sob seu peso e fechou a porta vagarosamente atrás de si. Apoiou a mão direita no portão de entrada, ainda cabisbaixo, e o empurrou com modorra ou seria dúvida do ato que estava por praticar? Não sei dizer, mas tinha nas faces um lance de tristeza, de agonia ou de diferença. Buscou parecer desprendido, sem compromisso, mas era nítida a frustração estampada nos olhos, que fazia com que sua boca diminuísse de tamanho por vezes. Passou o dedo indicador na barra de ferro que dava apoio aos filetes de metal, como se a acariciasse e deu-lhe um leve tapa. Levantou rapidamente o dedo até a altura da visão e em seguida enfiou a mão no bolso da calça limpando-a no tecido interno. Passou as mãos pelos cabelos, ajeitando-os para o lado e decidiu deixar o local. Andou alguns metros com passos diminutos, e voltou-se como se algo o dominasse ou exigisse sua atenção. Ficou de frente para a casa e afastou-se com alguns passos de costas erguendo a cabeça até sentir resistência no pescoço. Olhou direto para a janela do nosso quarto onde a cortina balançava suavemente. Lá estava eu espreitando-o, sem nenhuma dignidade, muito menos remorso ou gratidão.

Ele partiu deixando um vácuo. Espaços a perder de vista pela casa toda. Lacunas não preenchidas. Há lugares vagos na cama, à mesa e um chuveiro só para mim. Páginas inteiras vazias nos álbuns que compartilhávamos. Espaços para novas fotos que irão substituir as que estão pela metade. Porque sua imagem não merecia um lugar junto à minha. Desfez-se como uma névoa soprada pela brisa, misturando-se as cinzas do passado, jogadas ao vento.

Ester M. Endo

mendo
Enviado por mendo em 28/09/2007
Código do texto: T672538