Procrastina-se tudo, menos o amor.

Acordei de sobressalto na sexta-feira. Não tinha conseguido produzir nada. O professor desafiou-nos, ainda na segunda, a escrever uma crônica e eu, como brasileira de raiz, procrastinei até onde deu. Havia agendado para a madrugada de quinta o momento da grande inspiração.

Chegado o dia, observei as últimas deixas do cotidiano que poderiam virar uma prosa poética ou um conto de humor: um bêbado a vociferar para os ares, um cachorro a ladrar e motocicletas cortando o ar – e nada! Abri minhas mídias sociais. Fiquei com sono e resolvi “empurrar com a barriga” para a manhã seguinte.

Como se não bastasse eu ter dormido até tão tarde, escuto a minha campainha tocar – Meu Deus! Quem será em pleno sol escaldante de meio dia? – resmunguei. Era o Sedex. Abri o embrulho. – Nossa! Uma tradução rara de um livro do meu filósofo predileto: Espinosa – suspirei de encantamento. Atrás da caixinha o nome da remetente: minha ex-namorada. A mesma foi fazer um mestrado na Holanda há dois anos e resolvemos terminar como em um “acordo de cavalheiros”. – Deus! Como a amava!

Bem... Para uma amante da filosofia, receber uma obra de seu pensador predileto surte praticamente o mesmo efeito de um buquê de rosas vermelhas. Então, inebriada pela saudade, esqueci meus pudores, peguei minha bicicleta e fui ao seu encontro na Universidade Católica na qual ela lecionava, conforme comentaram amigos em comum.

Pedalava tão rápido que parecia que ciclovias imaginárias se formavam frente a mim. Os carros dos quais eu desviava me lembravam, em meio a apitos estridentes, que eu estava “brincando de morrer”.

Adentrei ofegante o pátio suntuoso daquela instituição. Seminaristas, padres e freiras conversavam de modo descompromissado, parecia que era intervalo de aula. A avistei linda com seus cabelos castanhos e caminhando até ela, meio tímida, confessei – vim agradecer o livro que você me presenteou.

– Não precisava se indispor em vir pra cá, desse jeito e a uma hora dessas – ela falou-me meio sem jeito, com voz embargada de emoção.

E diante daquele público, nada conveniente para um casal homoafetivo se expressar, dei-lhe um longo beijo apaixonado.

Como era de se esperar, eu fiquei sem Crônica. Ela, sem emprego. Ambas, com nosso amor.

Publicado na coletânea Mulherio da Letras - Portugal (2020)

Andréa Agnus
Enviado por Andréa Agnus em 30/08/2019
Reeditado em 11/08/2020
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