O príncipe

Chamavam-lhe Príncipe. O seu padrasto era ferro-velho e morava numa casa pobre de um bairro da periferia de Lisboa. Logo vim a saber que era o seu sobrenome verdadeiro e que, realmente, essa designação fazia jus a algumas das suas façanhas e características.

Conheci-o em Leiria quando fizemos a tropa (serviço militar) juntos. Era um homem moreno de porte atlético e que aparentava mais idade do que tinha. Fazia lembrar alguém que vivia de expedientes, esquemas e que estava acostumado a enfrentar qualquer situação. Era alto e corpulento, tinha um farto e robusto bigode preto emoldurado por um rosto quadrado, mandíbulas possantes, um queixo salpicado por uma barba preta grossa e dividido por uma pequena fenda. Os seus olhos faiscavam de brilho e astúcia, emprestando-lhe um ar sagaz, perigoso e envolvente. Costumava usar um cordão grosso de ouro por cima do peito cabeludo e sempre descoberto pelas camisas que usava. Nas mãos usava uma aliança grossa e um anel com uma pedra vermelha que contrastavam nas suas mãos peludas, encardidas e calejadas. O perfume que exalava era muito intenso e barato.

No aquartelamento era temido por todos e até pelos seus superiores hierárquicos que evitavam entrar na sua rota de colisão, o que lhe conferia um certo estatuto de autonomia e fama.

A minha relação com ele era muito boa e costumávamos brincar e conversar bastante. Sentia que, da parte dele, fazia questão em me agradar o que tornava o nosso relacionamento bastante agradável, apesar de sermos muito diferentes. Formávamos um pequeno grupo de cinco militares todos de Lisboa e às vezes, descíamos até à cidade depois do expediente para jantar ou dar uma volta.

Nos finais de semana, o Príncipe aparecia quase sempre no quartel com um carro diferente (usado) que gentilmente colocava à nossa disposição para que pudéssemos ir para Lisboa nos sábados de manhã. Mais tarde, viemos a saber que os carros eram "assenhoreados" e que isso, para ele, era a coisa mais natural do mundo.

Um dia, insistiu muito para que num fim de semana fossemos almoçar em sua casa. Fazia muita questão nisso. Era uma espécie de pacto de amizade que teria de acontecer para que conhecêssemos a sua casa e família.

E lá fomos os quatros ter com ele, numa manhã fria e ensolarada de domingo. Quando chegámos, fomos recebidos pelo nosso anfitrião naquela pequena e única sala carregada de lembranças e porta-retratos, da sua pequena e modesta casa de um bairro pobre e descolorido dos arredores de Lisboa. O Príncipe estava radiante naquele dia e fez questão que ocupássemos todos a mesa singela e farta, coberta por uma longa toalha branca de chita.

O almoço decorreu em clima de festa e harmonia, com muita fartura e regado por um bom vinho tinto carrascão apreciado até à última gota. O Príncipe ocupou a cabeceira da mesa em sinal de orgulho, reverência e nós ficamos bem distribuídos ocupando o resto do espaço. Somente homens, já que percebemos ser esse o desejo do nosso amigo. Havia mais gente na casa, mas essas pessoas (mulheres e crianças) não tiveram permissão para aparecer na sala durante todo o almoço.

Apenas no final, aconteceu algo que marcou e emoldurou definitivamente aquele encontro. Pelos menos para mim, que me lembro até hoje de todos os detalhes, como se tivesse sido ontem.

No fim do almoço, quando já nos preparávamos para sair da mesa e ir embora, fomos surpreendidos pelo nosso príncipe que, num gesto expressivo e rápido nos pediu que ficássemos mais um instante.

Nesse momento, entrou na sala uma mulher muito nova e esquelética, cuja pele lembrava a de um defunto, boca mal tratada e com um bebé de colo que não devia ter mais de dois meses. Estava coberto com um longo e aprimorado vestido branco bordado que pendia quase até ao chão e lhe dava um ar estranhamente cerimonial para aquela ocasião. O Príncipe queria que conhecêssemos o seu filho.

Olhamos uns para os outros em sinal de respeito e admiração. Mas antes que pudéssemos pronunciar alguma palavra de apreço e circunstância, o nosso anfitrião tomou a nossa frente e segurou a criança nos braços. Aproximou-se da mesa, pegou em uma taça de vinho e molhou o seu polegar robusto, encardido e enfeitado por uma grossa unha esverdeada no precioso líquido que restara. Colocou-o na boca do seu filho recém-nascido, olhou-nos com alegria e num tom cordial e efusivo pronunciou muito alto as seguintes palavras, para espanto de todos nós:

- BEBE, CABRÃO!!!

Mongiardim Saraiva
Enviado por Mongiardim Saraiva em 04/01/2020
Reeditado em 09/01/2020
Código do texto: T6834189
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