A Sopa da Eulália

Eulália era nossa empregada desde que nasci. Na verdade, nem a considerávamos mais uma empregada, mas parte da família, tanto que tivemos que praticamente a obrigar a registrar a carteira, como agora manda a lei.

- A lei que vá aos diabos! – dizia, quando papai lhe pediu a carteira para fazer o registro.

- Mas, Eulália, agora é obrigatório para os patrões registrarem seus empregados domésticos...

- Não sou mais empregada e o senhor não é meu patrão há anos!

Meu pai olhou com respeito e admiração para a negra gorda e grisalha a sua frente. De fato, há anos que ela tinha seu próprio quarto, sentava-se à mesa conosco e até já havia me dado algumas chineladas pelas minhas peraltices. Seu salário, que não era lá grande coisa, era guardado na poupança, uma vez que papai lhe dava de tudo, desde remédios até doce de figo em caldas com creme de leite, sua sobremesa favorita, além de roupas e bijuterias.

Ela e mamãe sentavam-se à sala para ver novela, ambas com os cobertores sobre as pernas nas noites frias, e não era raro mamãe ficar brava quando, nesses momentos, Eulália cochilava, e alguém a despertasse para lhe pedir algo da cozinha.

- Eu mesma vou – dizia -, deixem a pobre Eulália descansar!

Eulália viveu muito tempo conosco, sendo que, já velhinha e quase cega, resolveu fazer uma sopa, coisa rara nos últimos tempos.

Havia, nesta ocasião, visitantes em casa, e a mulher resolveu que iria fazer uma sopa.

Não demorou para um delicioso aroma invadir a sala de jantar, e logo ela chegou com o caldeirão para encher a sopeira.

A sopa estava divina! Os visitantes adoraram, tanto que repetiram várias vezes. Eulália amava elogios a respeito de seus dotes culinários, experiência rara nos últimos tempos, uma vez que sempre estava indisposta por causa de seu reumatismo.

Após a saída das visitas, mamãe, fã número um da nossa querida cozinheira, pediu a receita para a negra, pois queria tentar fazê-la um dia desses.

Assim, Eulália foi dizendo os ingredientes, até que chegou em uma latinha do que ela julgou ser carne com molho, que apanhou na geladeira.

- Carne com molho? – disse mamãe, não me lembro de termos carne enlatada aqui em casa!

- Tem sim – disse, Eulália, indo pegar a lata vazia de cima da pia.

Como havia dito, Eulália era quase cega, e naquela ocasião ficou claro que era preciso levá-la à um oftalmologista que lhe operasse da catarata.

Não é todo dia que se usa comida de cachorro para fazer uma boa sopa!