O Mundo é um Shopping Center

Possuo uma caixinha onde guardo bilhetes de entrada de exposições e outras coisas relacionadas à arte. Intencionando guardar uma embalagem de cigarro na mesma caixa, perguntei-me qual a relação entre a embalagem de cigarro e a arte. Ora, acontece que não era uma embalagem de cigarro comum: e se, sob um ponto de vista marxista, a arte hoje é um produto, a publicidade (e sua profissão irmã – se é que assim posso chamá-la –, o desenho industrial) é a arte como produto ao extremo.

Os publicitários, semiólogos e desenhistas industriais usam e abusam da arte para seduzir e instigar as pessoas a comprarem cada vez mais.

Dessa forma, em nossa sociedade SER é TER, POSSUIR, COMPRAR, ADQUIRIR. O ser humano foi reduzido ao que ele compra, ao que ele possui. O indivíduo só se sente plenamente realizado se pode consumir.

Até os moradores de rua já perceberam isso, o que parece óbvio, já que vivem o auge do não-ser, por praticamente não poderem consumir. Vejamos o depoimento de um deles, extraído da obra O Realejo, de Rosana Palazyan, exposta na 26ª Bienal de São Paulo:

“Felicidade é ter uma vida normal. Dia-a-dia, ter uma atividade, ter o que você fazer, ter um dinheiro no final do mês... Fazer alguma coisa, né? E diversão é você poder comprar suas coisas, fazer o que você pretende, com seu dinheiro. Isso é ser feliz. Não tem problema você pagar, pagar, pagar... O importante é que você tá recebendo pra você pagar.”

Mas será que se eu colocar tal embalagem de cigarro no museu, ela será reconhecida como arte? Foi Duchamp quem iniciou a tradição de deslocar um objeto do cotidiano para o museu, transformando-o assim em arte: são os chamados readymades (arte pronta).

Um dos seus readymades mais polêmicos foi um urinol (vaso sanitário próprio para homens) de louça, que ele rebatizou de “Fonte” e assinou com o pseudônimo de R. Mutt. Segundo Duchamp, “Se o senhor Mutt fez ou não a fonte com suas próprias mãos, não importa. Ele a ESCOLHEU... criou uma nova idéia para esse objeto.”

No caso, se eu colocar a embalagem de cigarro no museu – é claro que eu não vou fazer isso: os readymades já estão mais do que ultrapassados –, a arte o idealizador do projeto já fez para mim: a minha única função seria a de selecioná-la e elegê-la como arte, reconhecendo assim o trabalho do profissional em questão.

Embora muita gente não reconheça os readymades como arte ou não os valorize, Duchamp revolucionou o conceito de arte.

E se os dandies defendiam que a própria existência deve ser considerada uma arte (daí a teatralidade deles), o ato de comprar – que está subordinado ao de existir – também é uma arte.

Obs.: após escrever a crônica acima, li uma reportagem sobre obras de arte que estão sendo produzidas em série, atual tendência que é o cúmulo da arte como produto.

Obs2.: crônica já publicada, sem a observação acima, no Diário do Vale, jornal que circula na região do Vale do Paraíba fluminense.

Helena Cirelli Guedes
Enviado por Helena Cirelli Guedes em 10/11/2005
Reeditado em 04/06/2008
Código do texto: T69404