A Saia

Existia no final dos anos de 1980, lá na Praça Nossa Senhora Aparecida, em Moema, o bar e restaurante Zillertal. Servia uma ótima tábua de frios, com chope de boa qualidade. Temperatura certa. Colarinho branquinho! Naquela época dificilmente alguém pediria um chope sem colarinho. Não sei se esse restaurante ainda existe. Creio que não. Até procurei na internet, mas não achei nenhuma referência. Era frequentado pelo bom paulistano, acima dos vinte e cinco anos, que já estava encaminhado na profissão, pra ter cacife para bancar seus preços. A moda era provolone à milanesa. Ninguém resistia a um provolone à milanesa. Vinha soltando fumacinha. Macio! Maravilhoso com um chope. Ou dois. Não havia ainda a lei seca. Tudo era possível naquela década. Eram os anos da abertura política – da nova Constituição. As mulheres já alcançavam bons empregos. E nas mesas dos bares havia sempre um cinzeiro.

Frequentava o Zillertal. Mesmo não tendo cacife. Mas tinha o suficiente para rachar a conta. Naquela época a mulher já fazia questão de pagar suas contas. Era um grito de liberdade. Saíamos aos sábados da Zona Leste em direção aos cinemas, teatros, shows na região da Paulista, Bexiga, e depois íamos comer. Coisa de paulistano. Zillertal, Margherita, Rodeio, Mistinguett – Mistinguett ainda existe. Ótima pizza frita. Margherita e Rodeio também. Aquilo tinha um quê de chique! Era por o pé em calçadas limpas. Ultrapassar o limite delimitado pelas classes. Mas a minha história é no Zillertal.

Dizem os especialistas que aquele não foi um período muito bom para a moda. Não usávamos saias curtas, nem blusas decotadas. Vestíamos saias imensas – pregueadas, franzidas, godês, meio da canela. Blusas de mangas imensas, com ombreiras enormes. Botas de cano longo, cabelos esvoaçantes, armados. Assim éramos. Excesso!

Era 1987 e fomos ver Meno Male no Teatro com Juca de Oliveira. Extasiados, em cólicas de tanto rir, chegamos ao Zillertal. Lotado, só conseguimos uma mesa próxima ao banheiro feminino. Mesinha pequena. Mal cabiam os pratos e o Chope. Dois chopes! E o provolone à milanesa! Até chegarem os pratos, olhávamos ao redor! Era algo que fazíamos muito. O aprendizado para aqueles que nascem longe dos lugares da moda está em olhar. Observar. Guardar e usar no futuro. Assimilar o máximo possível em um único olhar. E era assim que aprendíamos. Era assim que descobríamos o que pedir. Como usar o talher. Às vezes, um cotovelo na mesa denunciava a origem. Hoje, em tempos de self-service, todos colocam os cotovelos nas mesas e está tudo muito certo!

Mas voltando à história, de uma mesa bem posicionada junto à janela, levanta-se uma moça - saia linda – mistura de viscose com seda e fios dourados. Blusa branca. Botas cano longo, echarpe nos ombros, maquiagem bem feita e vai em direção ao banheiro. Passa por nossa mesa a flutuar, e deixa um rastro de flores no ar. Meu companheiro estica os olhos. O copo que vai aos lábios tem um leve, muito leve interromper de percurso. A cabeça, uma pequena inclinada para ver melhor. Tudo muito discreto. Ele era assim – discreto!

Ainda hoje sou curiosa, mas quando jovem, a necessidade de aprender me fazia bem mais curiosa. Então, fico atenta para ver a moça passar. Quero ver melhor suas roupas e o cabelo. Não preciso esperar muito. Logo ela passa, e, neste momento percebo que já aprendi muito. Aprendi a arte do disfarce. De não rir quando vem aquela vontade danada de dar uma gargalhada! A moça passa e a barra da saia está presa no elástico da calcinha! Provavelmente ao se vestir no banheiro, não percebeu que a ponta da saia ficou presa no lingerie! E todos que estão daquele lado do bar devem ter lhe visto seu derriére!

Faço cara de paisagem – aquela cara de que nada acontece, e continuo degustando meu provolone à milanesa. Porém, em meu campo de visão está a cadeira e a moça – ao sentar, toda mulher que veste saia, leva as mãos à parte de trás para assentar a saia e não amarrotá-la. Ao fazer isso, ela percebe que a saia está presa na cintura, e nos próximos minutos a pobre moça faz de tudo para, mesmo sentada, puxar a saia para baixo. Tarefa difícil, mas creio que deve ter conseguido realiza-la. Saímos antes do bar. Essa foi a última vez que fui ao Zillertal. Depois disso troquei de namorado. Casei. Mudei de ares, mas, sempre que uso saia, independente do modelo, olho no espelho antes de sair de um banheiro. Aprendizado por observação!

Fátima Batista
Enviado por Fátima Batista em 22/05/2020
Reeditado em 15/07/2020
Código do texto: T6954536
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