BROXAVÍRUS

De fato... todo ser humano precisa plantar uma árvore, ter um filho, escrever um livro e... dormir pesadamente sob o efeito de álcool. Foi exatamente o que fiz na passagem do domingo para segunda. Sabe-se lá quantas horas apaguei, mas acordei. Era uma segunda qualquer de um final de verão no hemisfério sul e eu, apenas um latino-americano esfolado pela vida, ou melhor, pela pressão de estar envelhecendo sem ter realizado p... nenhuma desde que tomei consciência do meu lugar neste tempo e mundo.

Como de hábito, abri os olhos e peguei o celular para ver as notícias. Ora, estava sem internet. Sem Wi-fi e nem mesmo o velho recurso dos “dados” das operadoras telefônicas. Quem sabe mais uma vez a conta tivesse vencido e eu, desempregado, teria que vergonhosamente encontrar alguma forma de levantar grana e voltar a se conectar ao mundo virtual, afinal, nestes tempos, se não estou na rede não estou no planeta terra. Frustrado, segui ao banheiro, lavei a boca, rosto, evacuei o que era necessário evacuar do corpo, fui ao banho, joguei água nas plantas – as minhas únicas companheiras reais – e abri a janela para rua. Um minuto, cinco minutos, dez minutos.... precisava encontrar uma forma de voltar a vida.

-- Enviar um curriculum ao supermercado novo que abriu na cidade? Não dá! Não tenho internet!

-- Se oferecer para digitar trabalhos aos estudantes universitários, futuros desempregados como este latino? Como, se não tenho internet?!

Pensei, pensei... já estava andando em círculos. Era um latino-americano fodido à maneira Belchior, sem pai, nem mãe, vendia o almoço para comprar a janta. Quando moleque sonhava em ser médico, mas com muito esforço consegui concluir o colegial, e por um golpe de sorte, consegui ingressar em uma faculdade para ser professor de literatura. Formei, mas o que ocorre é que mal terminei o curso, e tornei-me obsoleto, aliás, a figura do professor tornou-se obsoleta. Agora tudo se faz pelo mundo virtual! E aqui estou... vendendo o almoço para comprar a janta.

-- Precisarei sair, quem sabe recitar poesias no terminal de ônibus! Isso, posso colocar uma plaquinha, “Professor de literatura, latino-americano, desempregado e sem um tostão no bolso até para acessar a internet”.

Pronto, se não tivessem pena, me dariam moedas pelo silêncio. Depois de dias em auto quarentena, sai do pequeno apartamento... sentia-me como se tivesse saído de uma caverna platônica ou coisa do tipo e para surpresa, as ruas estavam desertas!

-- Ora, ora. Acaso hoje comemora-se algum tipo de feriado?

Ignorei àqueles pensamentos negativos e segui ao terminal de ônibus. Tudo fechado. Perplexidade, pois desde que me entendia por gente, jamais avistara o terminal de portas fechadas. Dei a volta, olhei pela frente, por trás... custava a acreditar. Bati na janela da gerência do terminal.

-- Oi!!! Alguém aí?

Nada. Silêncio absoluto. No lugar da extrema vontade voltar à realidade virtual, o espanto e medo tomou conta. Teria acontecido algum atentado terrorista? Não é possível, pelo menos haveriam policiais nas ruas para orientar as pessoas a voltarem para casa. A polícia! Sim, só poderia haver um lugar para sanar essa dúvida! E justamente o batalhão da região ficava a um quarteirão do terminal. Lá vou eu.

-- Alguém aí???

Tudo estava fechado. Inacreditável. Talvez o melhor fosse correr até o meu canto e observar de lá. Se até a polícia estava entocada, boa coisa não era.

-- Ei jovem! O que está fazendo aqui?

Ufa! Uma voz aparecia!

-- Vá para casa, se tranque e só saia quando anunciarem na televisão.

Não tinha televisão, mas estava intrigado com a ordem que vinha de uma pequena fresta na janela.

-- Senhor policial, não entendo. Aconteceu alguma coisa na cidade? Até o terminal está fechado?

-- Não ficou sabendo?

-- Não!

Silêncio por um minuto.

-- Pois bem, vou lhe falar rapidamente, e depois suma daqui. Na noite de ontem descobriram um novo vírus, que possui uma velocidade de contaminação nunca antes vista na história da humanidade. O vírus prolifera com poucos metros de distância, e disseram na televisão que ele contamina até pelo mero olhar...

Ah, o bom e velho terrorismo televisivo. Hehe Pensei.

-- Como podem levar meses para entenderem o que é esse vírus, e mais outros meses para inventarem uma vacina, as maiores autoridades do mundo recomendaram quarentena global e imediata.

-- Nossa! Então estou correndo risco de vida aqui?

-- Bem... vejamos... bem... sim e não.

-- Não entendi! Esse vírus mata ou não?

-- Depende...

-- Depende do que???

-- O nome provisório que nós brasileiros estamos dando ao vírus é BROXAVÍRUS. Se você não quer ser atingido pela impotência sexual, fique em isolamento. Agora suma. Suma! Suma!

Corri como se não houvesse amanhã, e quando consegui parar, pensei... Nem diante do poderoso coronavírus que há dez anos levou mais de 100 mil vítimas no país, as pessoas se recolheram assim. De lá para cá foram outros tantos vírus... há quem diga que estejamos em um guerra química silenciosa. Mas o importante aqui é constatar duas coisas. Primeiro, os homens ainda dominam o mundo. Segundo, a masculinidade é tão frágil como um castelo de cartas.

Fosse o tal vírus um eliminador de libido das mulheres, o mundo teria parado desta forma? Jamais. As mulheres que dessem os próprios pulos!

Além disso, não importa se morre 10, 20 ou 100 mil pessoas, se perco entes... o importante é manter as aparências, sobretudo, o aparelho sexual ereto, pronto e preparado para o que der e vier, a despeito da M.... que tem se tornado os nossos dias. Pouco importa se trabalhei 8, 10, 14 horas... se estou sob pressão diária para se manter vivo, se tenho uma M... de conta de internet que mal consigo dar conta. O importante é estar preparado para provar e defender o que se tem entre as pernas. A masculinidade de um homem depende disso, da capacidade de provar diariamente que é digno o órgão que leva na parte inferior do corpo. É precisamente por isso que ela é como um floco de neve, que derrete a menor ameaça, pois essa tarefa de ter que se provar diariamente estará fadada sempre ao fracasso, pois o ser humano é um ser humano, sempre exposto às tempestades e intempéries da vida.

-- Ah se lá atrás, há dez anos, alguém dissesse que o coronavírus causava impotência sexual. Teríamos poupado milhões de vítimas, incluindo minha mãe e pai, e não seria mais um latino-americano sem um tostão no bolso à maneira Belchior.

B Pinheiro
Enviado por B Pinheiro em 22/05/2020
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