O guarda que guarda minha rua

Hoje é domingo, e o guarda que guarda minha rua durante as madrugadas ainda não veio receber o ordenado. Já faz mais de semanas que não escuto o barulho de suas buzinadas noturnas, sua presença militarizada, seu modus operandi tão seu. Já faz semanas que o guarda que guarda minha rua sumiu.

Os cachorros de minha rua — e falo ''minha rua'' em sentido de licença poética, despida da ideia de posse, carregada de afeto, como quem fala "minha mulher'', "minha vida" ao referir-se à amada— mas, enfim, os cachorros de minha rua, os gatos que vigiam nossos telhados, nós, os insones, em resumo, estamos todos com saudades da presença militarizada e paradoxalmente afável do nosso guarda que guarda nossa rua. Ultimamente, toda vez em que, às alturas da madrugada, abrimos nossas janelas para ventilar a noite, e não encontramos o guarda que guarda nossa rua, nos perguntamos: "Onde estará o guarda que guarda minha rua?"

Dizem as boas línguas da vizinhança que ele ''pegou'' o coronavírus; as más, asseveram que ele morreu; as neutras são enfáticas em admitir que o guarda que guarda nossa rua está depressivo por conta das incertezas do futuro — que o desemprego iminente, a recente separação conjugal pela qual passou, os filhos para alimentar, os boletos a pagar, a crise dos 60 anos chegando têm feito de nosso vigia menos vigilante. De minha parte, creio que o nosso guarda não pegou o coronavírus nem morreu, também não está depressivo.

Para mim, ele foi ser pastor. Leva jeito para a coisa, sempre tive essa intuição.

Já faz semanas o encontrei nas altas alturas da madrugada, concentrado, sob a sombra de uma árvore e a iluminação de um poste, lendo a bíblia, o ''livro da salvação'', segundo ele; cheguei a lhe perguntar se não gostaria de seguir a carreira pastoril. A princípio, disse que não, que não levava jeito para folclore. Eu, constrangido, refiz a pergunta e lhe perguntei, em termos mais exatos, se gostaria de ser pastor, desses de igreja, que são levados, alguns, à categoria de líderes.

Houve, da parte dele, um silêncio agudo; em seguida, irradiou-se um "Seria..." E então um vizinho nos interrompeu; chamou o guarda que guarda minha rua e lhe pediu que fosse à farmácia mais próxima, comprar dipirona, urgente. Desde então, o guarda que guarda minha rua não voltou. Penso que foi se dedicar ao pastoril, ao pastoril do tipo religioso, um dos mais progressistas de todo o reino do folclore da salvação.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 24/05/2020
Reeditado em 30/05/2020
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