Sobre um dia estranho

Acordo e ouço um traficante da rua falando sobre o amor de Deus. Também ouço o barulho das marteladas do meu pai, fazendo uma casa de gatos pra minha irmã. Detalhe: pelo que eu me lembre, ela não tem gatos.

Levanto da rede e não vou direto para o banheiro, como faço todos os dias. Sento na mesa e escuto as risadas do meu pai, que vem correndo para a cozinha. Nas mãos, ele traz o celular e mostra as fotos de um bebê. É a filha da minha prima, que acabou de nascer. "Desde quando ela estava grávida?", pergunto surpresa e coçando os olhos. "Ela não sabia que estava grávida, foi para o hospital ontem com dor e teve."

Ao falar isso, ele dá uma gargalhada, um pulo e volta para o pátio. Fico na cozinha, com o rosto congelado na expressão de surpresa. Como isso é possível?!

Agora, não estou mais na cozinha (que dia esquisito), estou no quarto novamente, como se acordasse de novo. Olho no relógio: 14:16. Que estranho! Estou com o celular na mão e vejo os relatos das minhas tias no grupo da família: "ela disse que estava menstruando normal, a barriga cresceu um pouco, mas ela achou que era normal." Normal... Eu não tinha saído do grupo da família?

"Essa minha prima precisa de ajuda. Da última vez, ela se jogou bêbada do alto do prédio em que mora. Só não morreu por causa do galho da árvore em que ela esbarrou e desacelerou a queda."

"Será que ela estava escondendo a gravidez pra tentar abortar? Ela é capaz de tudo pra esconder uma traição da mulher com quem é casada... além disso, tem o Emanuel, filho de um relacionamento que não deu certo. Por falar nisso, até hoje ele não devolveu minha toalha dos minions."

"Pobre criança! Agora vejo que o nome dela vai ser combinando com o do irmão! Emanuela! Que falta de criatividade para dar nome! Parece a protagonista do Bird Box, que chama as crianças de garota e garoto. Agora lembrei porque saí do grupo da família... ninguém vai dizer que isso é ridículo? Mas se saí, como estou vendo as mensagens?"

Estou um pouco tonta. Ouço a voz da minha mãe falando "olha só, acordou! Menina, essa pílula é forte mesmo... Mas passou a dor?" Agora eu lembro... estava com muitas dores nas juntas, estou com chikungunya! Tomei uma pílula e dormi... "Mãe, ainda estamos no isolamento social?" Minha mãe faz uma cara feia como se não me entendesse. "O vírus, mãe. Ainda estamos em casa por causa dele?" Ela está rindo e fala "Não é vírus, filha. É chikungunya. Deve ter sido o remédio... Ah, a Shirlei ligou pra saber como tu tá."

"Mas eu estava a quase um ano sem falar com ela..." procuro meu celular, mas só encontro o meu tablet que não funcionava mais. Para minha surpresa, ele liga. Olho a data: 27 de agosto de 2018.

Diante do meu espanto, o rosto de minha mãe começa a derreter. Aterrorizada, acordo ofegante. Tenho medo de olhar o celular, mas devagar desbloqueio a tela. 22 de maio de 2020. "Ufa! Foi só mais um dos meus sonhos loucos." Levanto e vou até a cozinha. Vejo a casa que meu pai estava fazendo no sonho, mas não era para gatos, e sim, para as bonecas da Lorena. Na cozinha, meu pai realmente fala para minha mãe: "Pois é, acredita que ela disse que nem sabia que estava grávida!" Ao falar isso, ele dá uma gargalhada e o pulo. Olho para minha mãe e saio correndo para o banheiro. Jogo a água no rosto e sinto que acordei de verdade. Acho que agora é real.

Gisely Sanctus
Enviado por Gisely Sanctus em 24/05/2020
Código do texto: T6956857
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