Lembrança de minha infância sulista

Quando tinha idade tenra, costumava correr pelo jardim da casa de meus pais. Minha mãe cultivava no quintal, em um canteiro grande e espaçoso, onze-horas de todas as cores. Essa recordação sempre chega junto com a das tardes que íamos visitar minha vó. A morada ficava no meio de um pasto sempre verde, nas minhas lembranças, tinha uma chaminé de tijolos, paredes de madeira com abertura de janelas largas, uma varanda, onde ficava uma cadeira de balanço na qual vovô punha-me ao colo para nos balançarmos quando ia anoitecendo. Ele costumava cantar para mim com sua voz de nasal arrastada. Minha avó usava uma echarpe no pescoço quando fazia frio. No entardecer gelado dos dias que sentimos o inverno da região que ela morava chegar, recordo das vezes que junto com meus primos sentávamos espremidos ao redor do fogão à lenha esperando que vovó enchesse nossos pratos de polenta com sopa. O quintal da casa de meus avós era pura fantasia e diversão. Nossa emoção fantasiava-se dos mais bonitos carrosséis enquanto corríamos uns atrás dos outros pelo meio das árvores. Éramos muitos, talvez dez, talvez mais. Ainda no frio, caçávamos não só uns aos outros debaixo do pomar como também nossos dedos titubeavam pelo chão ajuntando as nozes e os pinhões. Retornando à minha casa, ou às minhas já que de tempos em tempos nos mudávamos como se fôssemos retirantes, lembro-me também que tínhamos nossas casinhas às quais limpávamos e nos dedicávamos como se a nossa infância dependesse daquilo, e fazíamos delas nossos castelos, fortalezas e projeções. Uma em particular é viva em minha memória: tinha um fogãozinho de barro no canto onde assávamos pernas de salame e cozinhávamos ovos que eram tão abundantes nos galinheiros. Pegávamos farinha e açúcar das talhas, e às vezes como marotice alguma carne de porco de dentro dos potes de banha. Meu maior contentamento em relação às talhas era quando chegava o dia de benzer pães na igreja, levando a trocar os pãezinhos bentos que eram mergulhados dentro dos alimentos, acredito que para que não faltassem no decorrer do ano e tirávamos a sorte sobre o pão do açúcar, docinho que era. As árvores emprestavam os galhos para fazermos nossos balanços de corda. Lembro-me de algumas tias que vinham em casa para tomar o mate com a minha mãe e imediatamente desaparecíamos para não incomodar. Voltávamos para casa quando a visita tinha ido embora. Ai se não fosse assim! Quantas vezes apanhamos, eu e meus irmãos, por conta das artes que fazíamos. Com vara de guanxuma, marmelo, pessegueiro, ripa de obra, bodoque de borracha, palha de milho. A vida não nos amedrontava, nem mesmo nas tardes de chuva que voltávamos da escola chapinhando nas valetas cheias de água. Eram dias de alegria, não importava o quão atormentadora parecesse a tempestade. Depois era comum que um ou outro tivesse inflamação na garganta ou no ouvido, mas tomavam um chá e tudo se resolvia. Uma infância feliz, que agora, sentada na minha própria cadeira de balanço, quem diria, eu trago à lembrança com saudosismo. Com saudades, acima de tudo. Éramos felizes. E sabíamos.
Memórias póstumas da Liberdade
Enviado por Memórias póstumas da Liberdade em 27/05/2020
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