Dois cães

Não sou daquelas pessoas viciadas em corrida, que compra o melhor tênis ou uma camisa de compressão térmica, nem daquelas que toda semana faz publicações em redes sociais do percurso que fez. Mas sei da importância das atividades físicas e de vez em quando faço as minhas. Ultimamente tenho corrido, e tem cerca de um mês que estabeleci a meta de fazer cinco quilômetros em vinte e quatro minutos. Quem corre sabe que não é tarefa fácil. Quando comecei estava por volta dos vinte e sete minutos, mas com os dias eu consegui diminuir um pouco.

Hoje eu coloquei na cabeça que alcançaria meu objetivo. Acreditar em si é meio caminho andando, ou meio percurso corrido, se desejar. Aprontei-me e fui para a pista de ‘cooper’. Alonguei-me antes de iniciar a corrida. No começo tudo foi tranquilo, como costuma ser, você se sente ofegante, mas sabe que não está cansado. Trata-se de um percurso de dois quilômetros e meio, então eu deveria concluir duas voltas. Para um corredor esporádico como eu o que mais pesa é a própria mente. Na primeira volta você está bem até ver novamente o trecho com a subida mais difícil. É nela que as coisas complicam. Uma voz, clara como se fosse a de outra pessoa, começa a te infernizar. Então inicia-se o verdadeiro teste. Avançar enquanto escuta “Você não vai conseguir”, “Acho que vai passar mal” ou “É melhor parar” repetidas vezes. Não estou nem na metade da segunda volta e a voz negativa continua a me encher o saco. Em determinado momento você tenta separar a voz negativa da sua por notar que aquela fala em terceira pessoa. Mas quando ouve “é, acho que não vou conseguir mesmo!” Você já não sabe se trata-se da sua própria voz ou daquela outra. Mas continua. Algumas histórias vem à tona, como a da tartaruga e da lebre, a do médico e do monstro ou a do Bruce Banner e seu poderoso alter ego. Você percebe que são figuras deste momento, dessa dualidade que se passa dentro de nós principalmente nos momentos de dificuldade.

Na segunda metade meus lábios já estão secos e meu coração parece que vai explodir. “Acho que vai ter um ataque cardíaco” diz a voz intrusa. Se não soubesse dos meus exames de rotina talvez eu pudesse cair nessa armadilha. “Acho que não vou conseguir!” Digo. “Não, você vai conseguir sim”, e responde a voz em terceira pessoa e percebo que nessa fase os lados entre otimismo e fracasso se alternam e quem me incentiva agora é a outra voz. Se puder ilustrar a sensação daquele momento é como se eu estivesse empurrando um muro tentando expandir meus limites. Já estava todo suado e a respiração queimava. Quanto mais próximo da linha de chegada mais distante parecia ficar. Nos últimos trezentos metros você não sabe se já estourou o tempo. O jeito era dar o ‘sprint’ e ver no que dava. Cerrei os dentes e olhei para a chegada com cara de louco. No fim você não sabe se realmente vai passar mal, se vai dar um infarto. A outra voz se cala. Peguei o celular e o tempo foi de vinte e quatro minutos e quarenta segundos. Alcanço o objetivo. Olho para o lado e vejo meu outro eu de joelhos, com as mãos no chão olhando para mim muito mais cansado do que eu. Eu digo “Eu não disse que conseguiria!” e ele olhando para mim me faz um joia com a mão antes de desaparecer. A satisfação é imediata. Sinto-me poderoso e lembro-me da história de que dentro de nós há dois cães, um bom e outro mal, e que eles estão sempre brigando, mas que vence o que estiver melhor alimentado.

PS: Durante a corrida eu tive a ideia de escrever essa crônica se tudo desse certo, e senti que isso me deu mais gás para alcançar meu objetivo.