SENHOR DOS EXÉRCITOS

SENHOR DOS EXÉRCITOS

Súbito dou-me conta de que nada justifica mais o sacrifício humano nos campos de batalha da História do que a crença na vida após a morte. O que passa pela cabeça do homem que avança contra inimigo? A possibilidade da morte se impõe sobre qualquer outro pensamento. Não há glória ou grandeza que rivalizem com esse iniludível "deixar de ser". No entanto, milhares marcharam temerariamente sob chuvas de flechas ou de obuses! Por quê? A resposta mais simples é porque têm fé. Aliás, boa parte do que se entende por fenômeno religioso se refere à ideia de livramento, ou seja, a gratidão de sobreviver a um grande perigo. Graças a Deus!

Isto para os que sobrevivem. Para os mortos o consolo é a vida eterna: Uma espécie de manutenção da consciência do indivíduo em lugar sem tempo nem espaço. Não há fome, sede, sono ou dor, logo, a imediata supressão de todos os males físicos que atormentam o ser vivo... Morrer sem desaparecer completamente, ao contrário, sendo premiado por ter dado a vida pelo ideal capitaneado pela amizade com Deus. N'esse sentido, toda a violência da guerra contra inimigos merecedores da fúria divina (porque infiéis, gentios, heréticos, demoníacos ou simplesmente rebeldes...) é perdoada per si. Como lidar conscientemente com a dor causada pelos danos das batalhas senão com a convicção de que, senhores da guerra, são os braços do soberano e as mãos de Deus? A partir d'aí, concordar todas as terríveis consequências das justas agressões bélicas com o acaso e o sobrenatural é apenas um passo. Aconteceu porque tinha de acontecer. Quem atira não tem culpa. Quem manda atirar não tem culpa. Ninguém tem culpa. Afinal, matar n'uma guerra não é assassinato. Senhor dos Exércitos -- um dos títulos divinos atribuídos a Deus na Bíblia -- Ele pende o acaso da batalha ao povo eleito. Estar do lado certo (com Deus e tudo) sempre nos anima a partir para a guerra.

Essa relação entre guerra e religião atravessa a História. Sem a fé no sobrenatural o soldado avançaria sobre o inimigo apenas por aventura e dinheiro. Não são boas razões... Não há nada mais inútil do que aventura ou dinheiro para um morto. Quem morre, tal como descrevia o Direito Civil desde os antigos romanos, é privado de todos os seus bens com a morte. Por isso que assassinato é também o roubo de tudo que o assassinado tinha. A vida civil -- ou melhor, a ordem social -- somente é possível se os membros de dada sociedade não se trucidarem uns aos outros. O esforço civilizatório, portanto, consistiu em ordenar as pessoas para que dentro de seu grupo identitário elas conseguissem coexistir ao mesmo tempo em que trucidavam outros grupos de outras sociedades. Talvez seja por isso que o racismo e o etnocentrismo sejam tão presentes no inconsciente coletivo. O sentimento identitário do "nós" contra o "eles" presente em todos os conflitos humanos se manifesta na contínua agressão nas sociedades contemporâneas. A civilização permitiu que sociedades se integrassem em oposição a outras sociedades. N'isso, as crenças desempenharam um papel fundamental. A defesa dos interesses do grupo ao qual se pertence -- ou com o qual se identifica -- justifica agressões a outros grupos, mas é a fé de que nem mesmo a morte seja o fim da existência que motiva a pôr a própria vida (e a do inimigo) em risco. É somente com a promessa de continuar a existir d'algum modo n'algum lugar que o soldado pode lidar com a própria morte e dos outros à sua volta.

Após as bocas de fogo se calarem e a paz do cemitério se impor até o próximo conflito, os cronistas vêm para narrar os factos e lhe atribuírem sentido. Não raro, com a ingrata missão de transformar genocídio em heroísmo... Cedo ou tarde, Deus entra na equação para explicar o inexplicável, isto é, como pessoas boas fazem coisas más e continuam boas. Não continuam!... O homem que mata é um assassino, ainda que o faça em nome de Deus ou com o uniforme militar. A questão é que sempre se minimiza a morte do inimigo sob o discurso de que este sequer tenha alma ou humanidade plena. Bandidos podem morrer independente da gravidade de seus crimes, o que faz de policiais, de certo modo, recolhedores de lixo humano. Negar a importância da vida d'aquele que chamamos de inimigo dentro do grupo social ao qual se pertence tem sido a narrativa necessária para justificar a violência ao largo de qualquer autocrítica.

N'esse sentido, a única paz possível sempre será a do cemitério. Ali, entre cruzes e lápides, constrói-se a ponte entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Deus, quem quer seja Ele, acolhe amigos e inimigos em sua misericórdia com uma tolerância de Pai que os seus crentes são incapazes de experienciar. Os religiosos -- com suas regras, dogmas, mandamentos... -- sempre se veem como bons e abençoados ao mesmo tempo em que vaticinam o inferno aos não religiosos. Ao declarar o outro mau, ser mau com o mau parece algo bom. Por isso que os bons (autodeclarados) podem ser assassinos e conviverem bem com isso. Podem marchar contra o inimigo e trucidá-lo na fé de que haja um mundo no qual toda a violência seja perdoada e até premiada. Entre pacificadores e pacifistas, a diferença é a mesma de entender a paz. O primeiro como submissão do inimigo, o segundo como não-violência. Escolher a não-violência (ou ao menos do uso excepcional e restrito da violência) como caminho para a paz implica em reconhecer que o militarismo e o armamentismo não constroem sociedades justas. A religiosidade que perpetua o belicismo heroificado perpetua também os massacres dos diferentes (não necessariamente inimigos...). A função histórica das religiões sempre foi de padronizar as crenças, ordenando o fenômeno religioso. Penso que a relativização das guerras como resultado aceitável das relações entre sociedades mediante o consolo das religiões não nos conduziu a um estado de coisas no qual as pessoas se responsabilizam pelo mal que fazem aos outros, sim pela ilusão de possam continuar apostando nas armas para resolver seus conflitos na certeza de que haverá uma vida para viver após a morte.

Betim - 04 07 2020