Os carteiros

O meu aprendizado com as letras foi aperfeiçoado no feitio das cartas. Costumava passar as férias escolares numa cidade do sertão baiano e, por ser um dos poucos letrados na comunidade, fazia as vezes de Pero Vaz de Caminha, levando e trazendo as notícias “da armada”. Nessas histórias, além dos fatos triviais tipo “lembranças para fulano e sicrano”, encarregava-me de recheá-las com o que a minha imaginação permitia. Sabe aquela história de quem conta um conto, aumenta um ponto? Assim era com o meu ofício de missivista.

Mas tudo muda. A chegada do telefone celular, cujos números hoje ultrapassam os de habitantes no país, aperfeiçoados com a comunicação via internet, aí incluídos e-mail, twiter, Facebook, whatsapp e outros, tornou a tradicional carta quase que peça de museu. Mas é bom não perder de vista a história. Houve um tempo em que a figura do carteiro era o veículo utilizado para a difusão das notícias. Tinha até música pra ele – “quando o carteiro chegou e o meu nome gritou com a carta na mão”. Alguns o chamavam de estafeta, com a pronúncia fechada (ê), que eu tinha a maior dificuldade com este uso. Refiro-me aos anos setenta, em que a capital João Pessoa era quase horizontal. Contavam-se nos dedos das mãos os edifícios que por aqui eram erguidos. E aí o trabalho das pessoas dos Correios era feito de casa em casa, entregando família por família, as suas correspondências. E como esses profissionais eram esperados... Tiro por mim, que tinha parentes morando na Bahia. Depois disso veio a privatização das comunicações telefônicas, que facilitou muito o contato por esse outro meio, dando início à “aposentadoria” das notícias por cartas. A importância (e até o romantismo) desse instrumento foi captada pelas lentes de Walter Salles, no filme Central do Brasil, estrelado pela nossa grande dama Fernanda Montenegro.

As relações com esses carteiros tornavam-se próximas, como se fossem de uma pessoa da família. O que servia a região em que eu morava, o Conjunto Boa Vista, que com o tempo passou a ser chamado de Bairro dos Ipês – que, a propósito, quase não se vê por lá um pé da árvore que lhe dá nome - era Valter. Como a entrega era sempre feita à tarde, lá em casa era a parada obrigatória para beber um pouco d’água, e dar uma aliviada no calor. De longe, quando ia se aproximando, já víamos a sua cara de felicidade por saber que era portador de notícias lá da “boa terra”, tão esperadas por nós. As de meu pai eram as mais constantes. Pelo menos três vezes por semana, as suas notícias estavam por aqui. E das vezes que eu relaxava na resposta, logo uma carta de cobrança estava à minha porta.

Hoje, Valter não é mais carteiro, optou por seguir nos estudos. A última informação que soube dele é que era advogado, andando pelo mundo do direito, em busca de notícias para os seus constituintes. Mas essas lembranças ficam.

Fleal
Enviado por Fleal em 14/07/2020
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