Mentiras sinceras

Tarefa das mais difíceis imposta aos pais é a criação e educação dos filhos. “O que dizer, o que calar”, como pergunta o poeta, é só interrogação quando se trata de lidar com crianças. Muito do que se diz, ou se escreve, muitas vezes não passa de generalizações. É sempre uma regra geral, recheada de muitas exceções, já que as crianças nunca são as mesmas, sujeitas, portanto, ao sabor dessas individualidades. O que significa dizer que essas lições, nem entre os próprios filhos, são infalíveis, pois o que deu certo com um, não dá a garantia de mesmo resultado com o outro.

E nesse assunto é sempre bom lembrar o que dizia Bernard Shaw, dramaturgo irlandês, com a irreverência que lhe era peculiar: “- As pessoas menos indicadas para cuidar de crianças são os próprios pais”.

Como exemplo dessa dificuldade, cito um caso que presenciei recentemente, protagonizado por uma amiga e seu filho menor. Em seus quase cinco anos de idade, iniciando o ano letivo, o garoto pediu para levar à escola um dos seus brinquedos, talvez pensando em “fazer figura” com os novos colegas. Nessas ocasiões os pais costumam fazer uma preleção, na tentativa de dissuadir o pequeno de sua intenção. E na conversa colocam tudo de ruim que pode acontecer. Apesar de todo o rosário de recomendações e cuidados, a criança não desiste e acaba levando o brinquedo.

No fim da tarde, ao voltar para apanhar o filho, a mãe o encontra chorando, amparado pela professora, e dizendo que um colega, inadvertidamente, havia levado o seu brinquedo para casa. O interessante é que o choro - pelo que ele dizia - nem era tanto pelo brinquedo momentaneamente desaparecido, mas pelo temor da reação que teriam os seus pais, quando soubessem do acontecido. Tudo a ver com a preleção que ouvira antes de sair de casa. A mãe, mais compreensiva diante do choro sentido do filho, ali mesmo o absolveu, argumentando que no dia seguinte o amigo devolveria o brinquedo. E ele jogou o segundo receio, associado à reação do pai ao saber da perda. Com naturalidade e a praticidade peculiar das mães, ela falou nem precisar contar ao pai, já que no dia seguinte o brinquedo estaria de volta. E foi aí que o rapazinho de cinco anos, ainda choramingando, saiu com a cortante interrogação: “- mas não é para falar a verdade?”

Ouvindo esse diálogo, na tentativa de consolar a criança e ao mesmo tempo socorrer a mãe diante de seu visível desconcerto, resolvi dar o meu pitaco, até que ela se refizesse do susto. E confirmei para o garoto, em meio a uma história, a necessidade de falar a verdade sempre, acrescentando que o pai compreenderia o descuido do colega com a devolução do brinquedo.

Com criança é assim. A gente nem se toca com o que diz ou faz, mas tudo isso vai fazendo a cabeça delas. Vai desde o “se for pra mim diga que não estou”, quando chega uma ligação telefônica inconveniente, a dizer que “tratamento dentário não dói”, passando por muitas outras mentiras sinceras, que só interessam mesmo na poesia de Cazuza.

Fleal
Enviado por Fleal em 28/07/2020
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