Cinema e magia

Na minha idade um bom lugar para conhecer pessoas interessantes é na antessala dos médicos. Por várias razões. Muitas das pessoas que estão ali já passaram por bons anos de vida e têm muita coisa a nos ensinar. Delas recebemos indicações de especialistas que nem estamos – ainda - carecendo dos cuidados, mas que um dia, com certeza, vamos precisar; ouvimos as suas histórias de vida que nos trazem reminiscências que pareciam perdidas; além das gargalhadas que arrancamos dos relatos jocosos que desfilam nesses momentos de espera, ajudando para que sejam menos sofridas essas horas.

Conheci uma senhora assim, aguardando um ortopedista. Tinha ido ao médico já recomendado por outra pessoa, cansada de ser mal tratada por outros profissionais e que me garantiu que esse era diferente. E aquela senhora confirmou, exaltando as suas qualidades: atencioso, cuidadoso nos exames e nas explicações, realmente um excelente profissional. Dele me falou ainda: “- Pode até ser que o Dr. Cousseau nem me cure dos meus problemas, já que a idade não ajuda muito. Mas pelo menos agora eu sei bem direitinho o que tenho”.

E enquanto aguardávamos, ela me contou da sua paixão pelo cinema. Gostava muito de assistir filmes, mas com um detalhe: tinha que ser numa sala de projeção, naquela tela enorme, com o clima que só esses locais propiciam. Até via uns filmes em casa, mas como ela disse, não era a mesma coisa.

Depois daquela conversa fiquei pensando sobre a minha aproximação com o cinema. Para os que têm idade próxima à minha, acho que não foi muito diferente. O primeiro filme foi a Paixão de Cristo. Toda sexta-feira santa, além do almoço com a fartura de peixe e feijão de leite na casa da minha avó, a tarde era reservada para essa aventura. Certamente que o sofrimento de Cristo me atingia, até arrancando lágrimas não somente minhas como daqueles pequenos assistentes como eu, que todos os anos estavam ali, naquele velho cinema de subúrbio, em Salvador.

Mas a minha história juvenil mais marcante com a sétima arte vem dos anos sessenta, com o filme Spartacus, estrelado por Kirk Douglas. Lembro até hoje da cena que mais me tocou, e que mais tarde veria sendo reproduzida em muitos cursos sobre liderança. Um grupo de soldados aproxima-se de uma legião de derrotados e um deles sugere que seja apontado Spartacus, para a libertação dos demais. Ao levantar-se o verdadeiro líder, para se entregar, e assim livrar os outros, é seguido pelos demais que também vão se levantando e gritando: “- Eu sou Spartacus”. Mais de cinquenta anos depois, essa cena ainda é muito viva em minha mente, acompanhada dos aplausos que enchiam o cinema nessa hora.

Os filmes continuam sendo assistidos pelas pessoas. Em razão dos altos preços cobrados pelas salas de projeção, muitos optam pelas versões piratas, algumas delas disponíveis antes mesmo de entrarem em cartaz nos cinemas. O problema é que veem o filme, mas perdem a magia de assisti-lo naquela tela enorme (e, ainda por cima, agora, a pandemia), no escurinho do cinema, quem sabe até chupando um sumido drops de aniz, como sugeria a roqueira Rita Lee.

Fleal
Enviado por Fleal em 04/08/2020
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