"Burrocrapatia"

Acredito que todos que chegam aos oitenta têm preocupações em arrumar as coisas, para não deixar muitos problemas a serem resolvidos pelos familiares que, se vigente o isolamento social, serão impedidos de prestarem presencialmente a última solidária companhia.

Assim, nesse processo de arrumação das malas para a derradeira viagem por essa plaga física densa, estou imbuído da hercúlea tarefa de regularização da casinha, que meu amor definitivo, determinou como derradeira morada, para prevenir rotina de nômades, influenciada por minha ancestralidade.

Depois de ter concluído diversos passos, estou nos finais junto ao cartório, para averbar a construção do imóvel sobre escritura de terreno, anteriormente registrada, no início desse século XXI.

Dei entrada com a documentação exigida, inclusive com a escritura do terreno; paguei a taxa de protocolo; e dias depois recebi pelo “zap” comunicado sobre exigências e o valor do orçamento, quase dois mil reais (mais setenta reais se houvesse pacto conjugal), para realização da regularização.

Além do susto pregado pelo orçamento, duas das exigências me causaram espanto: por motivos de erro na descrição dos confrontos do terreno (escritura é serviço cartorial) era exigência certidão de confronto de competência da prefeitura (mediante taxa municipal, protocolo grátis); e a outra que teria que atualizar certidão de casamento e pacto conjugal (se houvesse).

Fui ao protocolo da Prefeitura para fazer requerimento sobre a certidão e depois ao cartório para providenciar a tal atualização, mas sem antes, entender as razões.

Confesso que cheguei ao cartório com certa irritação e perguntei a atendente: qual a razão de ter casado a mais de 52 anos, num dia onze, influenciado pela constelação de Escorpião, e essa certidão original de casamento mais do que consumado e certificado, expedida pelo cartório do Brooklin - São Paulo, precisar de atualização?

A atendente respondeu com aquele tom absolutista de somos a lei: devido ao senhor não ter casado em São Lourenço. Retruquei, ironizando o absurdo: de fato, mas aqui meu amor definitivo e eu douramos essa união. Isso não é mais do que atualização?

Com expressão no olhar de sorriso daquele de quem sabe que é absurdo essa espécie de certificação do cartório de um estado por de outro estado, desconversou, o senhor quer que faça o orçamento, o pagamento é antecipado.

Lógico que queria, mas sobre protesto cidadão, respondi: sim, mas preciso de mais autenticação das cópias dos documentos pessoais.

Mascarada, como eu, trouxe-me outro orçamento e mais um susto, quase duzentos reais. Dei-lhe duzentos, devolveu-me o troco e as cópias autenticadas, pediu meu telefone e avisou que lá para o meio da próxima semana estaria pronta certidão atualizada.

Agora, pensei, é como se o casamento civil tivesse acontecido, também, em São Lourenço, Minas Gerais. Magia cartorial, conseguem o mesmo casamento no mesmo ano, mês, dia e hora em dois cartórios separados por 450 km...

Mais poderoso que muitas tradições, o COVID-19 obrigou a todos, independentemente de gênero, classe, credo e etnia, sairmos às ruas mascarados. Bilhões de foliões nesse baile de terror. Enfim, foliões em baile de terror, mas solidários pela sobrevivência.

São Lourenço é um dos menores municípios, portanto resolver voltar a pé para casa, não é nenhum gesto ousado. Na caminhada, fu levado a lembranças e à consequente reflexão.

Impossível, para quem apreciou e aprecia demais a música e a dança, não ser transportado a Zé Ketti e sua marcha carnavalesca: “quanto riso, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão...”

Muito difícil depois de experimentar, por muitas vezes, a “burrocrapatia”, ilustrada com esse “causo”, não ser levado á lembrança dos anos 80, quando existiu ministério e ministro da desburocratização, Hélio Beltrão.

Com base em levantamento das questões de natureza burocrática, que pertencem à vida, ao cotidiano do cidadão comum, do seu nascimento até a sua morte o, então, Ministério da Desburocratização criou, implementou e iniciou a execução de projeto denominado “Cidadão”.

Os vícios de nossa tradicional e minúscula política: fisiologismo, corporativismo e patrimonialismo implodiram e descontinuaram o “Projeto Cidadão”. Deu-se continuidade a esse doentio estágio da burocracia brasileira, um dos fatores da ineficiência e ineficácia brasileira, reconhecida internacionalmente.

Ilustrações, ou seja, fatos ilustram melhor do que textos:

Brasil é campeão mundial no tempo estimado de quase 2000 horas gasto por ano pelas empresas, na preparação de documentos para o pagamento de impostos e contribuições. Os “lanternas” dessa competição gastam em torno de 161 horas por ano;

O tempo para um contêiner ser exportado, em média, dos portos brasileiros é de treze dias, um dos “lanternas” nesse campeonato de eficiência, Cingapura, leva um dia.

Órgão da Segurança Pública de um dos entes federativos, depois de realizar promoções e não realizar concursos públicos para manter a tradicional e racional pirâmide hierárquica, chegou a ter mais servidores em função de comando do que operacionais.

Está mais do que justificado a criação do termo “Burrocrapatia”, para titular essa amadora crônica, que aproveitou “causo real” ocorrido em terras mineiras, para expor uma das muitas doenças dessa república apequenada pela tradicional política praticada, expressa pela ineficiência e ineficácia estatal, representada por seus poderes e respectivos indicadores de resultados conseguidos.

Lógico e óbvio, com nossa participação pela incapacidade de nos unir, criar agenda de reformas mais do que necessárias e sabidas, mas sempre descontinuadas por essas doenças e, em grandes mobilizações pacíficas, lutarmos para que nossos poderes constituídos tratem essas doenças crônicas.

Xô COVID 19; xô fisiologismo; xô corporativismo; xô patrimonialismo; xô violência; xô corrupção; xô ineficácia do Estado, minha, das entidades de classe, das organizações sociais, do povo; xô...

Ave saúde ampla geral e irrestrita, do indivíduo, do povo, do meio ambiente, da política e do Estado!

Ave democracia!

Ave evolução ampla geral e irrestrita, identificada pelas expressões do bem, do belo; da paz, do amor e da sabedoria!

Endereço relacionado:

O QUE É POLÍTICA VELHA?

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/6658564

J Coelho
Enviado por J Coelho em 25/08/2020
Reeditado em 25/08/2020
Código do texto: T7045650
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