Relembranças de televizinho

Não sei, sinceramente, se ainda existe no Brasil a figura do televizinho, que – se alguém não atinou para a palavra – vale lembrar que era aquela pessoa que filava a televisão do vizinho, não raro todas as noites. Não sei mesmo e não gosto de fazer consultas quando simplesmente estou deixando as ideias correrem e – ao sabor dos meus sentimentos – as palavras vão ocupando seu espaço. Sei. Sei, sim, que há bolsões de pobreza no Brasil e pessoas distantes dos benefícios da civilização. Mas estou pensando apenas em pessoas mais pobres, como fui eu, na infância querida “que os anos não trazem mais”.

A verdade é que, mesmo na nossa região de pessoas humildes, de repente algumas poucas casas começaram a exibir as antenas de tevê. Aquelas que muitas vezes nos levavam a subir no telhado para ajustá-las ao encontro das ondas que traziam a imagem ainda descolorida. Não há dúvida de que as casas que ostentavam aquele apetrecho, exibiam também um certo status. Meu pai dizia que, quando pudesse, compraria a tevê, mas, temporariamente, ele ia apenas exibir uma antena bem alta, para impressionar. Dizia e ria-se. Uma maravilha! Era um sujeito brincalhão, que nasceu com o instinto da autoironia. Certa feita, chegou em casa de táxi, e viu dona Santinha – uma vizinha muito amiga – fazer um pequeno comentário nada atinente a sua viagem extraordinária naquele veículo alugado. Meu pai fez daquilo uma grande piada e dizia que teve de tranquilizar dona Santinha, porque o fato inédito levou-a a achar que ele tivesse ficado muito doente. E ria-se, e gargalhava-se, e nos divertia. Uma delícia...

O fato é que éramos pobres, portanto, ou ficávamos em casa, ou víamos tevê. Minha mãe e meu pai não se preocupavam, mas queriam que eu me divertisse um pouco. E assim, na condição de televizinho, fui compartilhando a tevê dos amigos de minha família. Sempre havia um rosário de recomendações. Educação, acima de tudo, nas casas amigas. Em jogos de futebol, Gérson lançava pra lá e pra cá, sem errar. Era bonito de ver. Eu achava aquilo o máximo, mas refreava um pouco a emoção nas vitórias do Botafogo, porque, muitas vezes, o anfitrião torcia para outro time. Educação. Comportamento. Eram palavras-chave.

Os televizinhos nos reuníamos para assistir a uma série americana, chamada Combate, estrelada por Vick Morrow. Aí não havia problemas. Éramos todos americanos contra os vilões alemães. E eu não tinha que refrear emoção alguma. E ríamos com o AEIOUrca da Tupi, em que despontavam Lúcio Mauro e José Santa Cruz. E assistíamos faroeste (me lembro de Rebelde, Bat Masterson e Chayene – espero não ter errado grafias). E assim meus vizinhos me facultavam uma diversão gratuita, que me levava a viagens heroicas, engraçadas, tristes – como é da natureza da própria vida.

Fui televizinho, primeiro, de meus tios Silvestre e José de Mattos, que me facultavam seus lares. Tio José tinha, ao fundo da casa, um salão bem grande, onde ele reunia quantos coubessem para assistir aos jogos do Campeonato Carioca. Bom sujeito, esse José de Mattos. Casado com uma de minhas tias, a Helena. Ele não sabia se divertir sem compartilhar. Não consigo imaginá-lo fazendo palavras cruzadas. Por isso, talvez, gostasse tanto de jogar malha, sinuca e baralho. Ali, ele tinha sempre alguém para dividir as alegrias. Lembro-me de que ele não gostava de dormir demais. Dizia que perdíamos muito tempo de nossas abençoadas vidas. Acho mesmo que chegou a contar o quanto perdeu da vida dormindo.

Um dia chegou a televisão lá em casa. Uma Standard Eletric. Era um patrimônio que, agora, tínhamos para nossa diversão, para nossa informação. Nela assisti ao discurso do João Goulart, em 13 de março de 1964. Minha mãe chegou à sala, disse que Maria Thereza, como sempre, estava linda e que eles iam derrubar o Jango.

Tínhamos tanto cuidado com a nossa Standard, a ponto de uma recomendação surreal ser seguida à risca. Um dos botões do painel não tinha qualquer indicação de sua finalidade. O técnico recomendou que ele não fosse tocado. E tantas vezes o técnico apareceu por lá, bem vestido, com uma pasta salvadora cheia de ferramentas e válvulas, e apenas torcia aquele botão intocável e a imagem ressuscitava. E pagávamos, pagávamos bem, por aquela mágica. Até que um dia nos cansamos, perdemos o respeito, giramos o botão e conseguimos controlar o aparelho sem a ajuda tecnológica.

Adquirida a tevê, facultamos também nosso aparelho aos vizinhos que não o possuíam, e nossa casa recebeu por algum tempo, quase todas as noites, alguns amigos televizinhos. Até que um dia, antenas e antenas passaram a povoar o bairro São Sebastião, e os vizinhos passaram a ser apenas vizinhos... Talvez melhores.