Carta, apenas uma carta

“Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado.”
(J.R.R Tolkien, O Senhor dos anéis)
 
     Ontem foi a segunda vez que fui lá. Como na primeira, novamente uma experiência forte, tocante, real, cheia de Deus, que me levou a pensar várias coisas. Realmente, um limite danoso a nós, moradores do século XXI, é vivermos muito superficialmente momentos que por si só são intensos. Há pouco tanino na taça do vinho da vida pós-moderna. Há inssossatez e insensatez em demasia nas praças digitais, sempre tão povoadas. E o pós-pandemia reserva novos prejuízos à convivência humana – escutem o que eu digo! WALLE, animação cinematográfica de 2008, quase beira ares de realidade: o planeta, o ser humano, seus lixos, sua mórbida vidinha e, sobrevivendo, uma tímida e invencível esperança, apesar de tudo.

     Voltando a ela, a cadeira na qual passa seus dias, a impossibilidade da fala devido aos problemas de saúde que a sobrepujam, os gestos aleatórios que apontam para um infinito que somente ela vê, sabe-se lá que recordações ainda vivas dentro de seus oitenta anos, um olhar que brilhou ao ver a figura do padre que, para si, reveste-se de um sagrado inexprimível, o sorriso anunciando uma alegria interior única e, estrada que o destino reserva: nada mais para fazer a não ser, como cantou Raul, ficar esperando a morte chegar.

     Desde que o mundo é mundo, gira a Terra em torno do Sol em aceleração, digamos, ao modo de inércia. Mas desde o ser humano nesse mundo, o seu ritmo de agora, diante do mesmo Sol, é bem mais veloz – embora não sei se mais produtivo. Essa aceleração desproporcional ao tempo do amadurecimento, ao tempo das atividades saudáveis, ao tempo necessário a cada coisa – amizades, oração, trabalho, descanso, família... –, ao tempo do estar presente, ao tempo do mergulho profundo nas experiências fundantes ao invés dos voos rasantes, superficiais e rotineiros, ao tempo do deguste saboroso da vida, essa aceleração rouba alguma coisa da gente.

     Foi necessário o tempo para que estas linhas preenchessem a folha em branco. Não muito, senão os poucos minutos que tirei para estar de novo diante dela, que nada mais tem a oferecer a ninguém, senão arrancar de cada um de nós, a ferro e fogo, o dever moral de estar junto, de cuidar, de ir visitar, de continuar amando... E, para quem souber aproveitar, sua total dependência, sua aparente inutilidade oferece a oportunidade de rever a si próprio. Após, resta o tempo que temos, o tempo para escrever e viver a carta, apenas...

     Escrevo isso sobre o dia de ontem, após ter sepultado hoje o pequeno Levi, que brevemente chorou para este mundo, tão logo sessou seu frágil vagido, silenciou-se para esta vida e viu o céu se abrir, no – rápido para uns, lento para outros, intenso aos que permitirem – misterioso movimento da vida. Quem quiser, aprenda!