Carta sobre um tempo que chegou
 
O amor tomava a carne das horas
e sentava-se entre nós.
Era ele mesmo a cadeira, o ar, o tom da voz:
Você gosta mesmo de mim?
Entre pergunta e resposta, vi o dedo,
o meu, este que, dentro de minha mãe,
a expensas dela formou-se
e sem ter aonde ir fica comigo,
serviçal e carente.
Onde estás agora?
Sou-lhe tão grata, mãe,
sinto tantas saudades da senhora...
Fiz-lhe uma pergunta simples, disse o noivo.
Por que esse choro agora?
(Adélia Prado)
 
     Como pode um homem nascer, sendo já velho? Poderá entrar segunda vez no ventre de sua mãe e nascer? (Jo 3,4). A dúvida de Nicodemos finalmente fez algum sentido para mim. Acabou por se tornar, hoje, meu desejo, após ter caminhado, de mãos dadas e vagarosamente – acompanhando seu ritmo decano –, ao lado daquela que me deu a vida. Não sei se virei a última página do livro de sua existência e dei início ao capítulo final, não sei se apenas comecei uma jornada que requererá longa paciência, não sei se é tudo tão novo que me causou susto. Sei que suas reações começaram a fazer jus aos seus cabelos tingidos de branco. Há lentidão nos passos, há tropeço nas palavras, há menos reflexos, há limites bem expostos.

     Como costumamos dizer: “parece que foi ontem que...” Olhar para esta obra que o tempo esculpiu, dia após dia, palmo a palmo, a quem chamo de mãe, e não ter do tempo a resposta do quanto ainda resta dele para nós dois juntos é deparar-se com a fragilidade da vida em toda a sua nudez e cruel insensibilidade. Desejo de que seja demorado o tempo, medo de que seja sofrido, esperança de que seja possível o aprendizado, necessidade de ser experimentado em toda a sua intensidade, misterioso nas surpresas que guarda consigo, divino a ponto de pertencer a Deus. Dias que alternar-se-ão entre alegres e difíceis. São os instantes de um fim cada vez mais próximo, que abre a perspectiva para o início do que não terá mais fim. Tudo, porém, pendurado por um fio prestes a se romper.

     Torna-se, até mesmo, difícil encontrar as palavras acertadas para dizer o que o interior sente, intui, palpita. Nem sei para quem escrevo – se para ela, se para mim, se para o vento, se para os outros... No fim, pouco vale os diplomas, os títulos, as comendas, os troféus na estante. Vale, sim, o que diz Drummond sentado em sua Mesa: “Este aqui é doutor, o bacharel da família, mas suas letras mais doutas são as escritas no sangue, ou sobre a casca das árvores.” É sobre a pele que se escreve a história, é sob a sombra de algum arvoredo que se descansa a memória, é nesta gota de lágrima – nem chorosa, nem lastimosa, apenas lágrima, como que virgem ainda de nome – que verte dentro, mas ainda não se derrama, é nestes terrenos sagrados e férteis que o olhar, contra sua vontade, vislumbra o ocaso, sem saber nem o seu dia nem a sua hora – igual está no Evangelho.