Gentileza

Alguns anos atrás a cantora e compositora Marisa Monte fez relativo sucesso com uma música chamada Gentileza. No seu canto, o protesto pelo fato de que “apagaram tudo, pintaram tudo de cinza, a palavra no muro ficou coberta de tinta”. O fato está relacionado a um personagem que viveu no Rio de Janeiro – conhecido como o Profeta Gentileza - e que entre os anos 70 e 90 percorria toda a cidade, espalhando uma mensagem de paz e fraternidade. Para ele deveríamos deixar de lado o “muito obrigado” e o “por favor” e usar em seu lugar o “agradecido” e o “por gentileza”. Em sua “filosofia”, ninguém é obrigado a nada e o nosso relacionamento deve ser por amor, e não, por favor. Pequenos gestos que, se não vão mudar o mundo, com certeza interferem no astral de quem é alvo deles.

Ele escrevia também os seus pensamentos pelos viadutos e muros, e o protesto de Marisa Monte, expresso na música, é exatamente porque, de repente, alguém espalhou “tristeza e tinta fresca”, apagando todas as suas mensagens.

Lembrei desse fato ao ler um estudo de Robert Levine, psicólogo da Universidade Estadual da Califórnia, desenvolvido em 23 grandes cidades espalhadas pelo mundo, para testar a afabilidade dos seus moradores. E, apesar de todas as manchetes de violência, deu o Rio de Janeiro na cabeça, como a cidade mais prestativa entre todas as pesquisadas. Ele comprovou isso a partir da reação das pessoas ao se depararem com situações como: alguém com deficiência visual para atravessar a rua, uma lapiseira ou um jornal que se deixa, propositadamente, cair na calçada.

Tudo isso me fez lembrar das diversas cenas que já presenciei no trânsito – muito comum em época de chuva – em que os carros emperram, por alguma razão, e na forma como as pessoas se comportam diante desses incidentes. A impaciência é a regra geral. Mas encontramos também muitos gestos solidários. Pessoas que saem dos seus carros para ajudar, em vez de ficarem abusadamente buzinando, ainda que não sejam a maioria, são encontradas, sim senhor!

Recordo de um episódio relatado por uma jovem senhora, que teve uma pane em seu carro, num desses momentos de tráfego intenso, no centro da cidade. Além das buzinadas e alusões ao fato de ser mulher ao volante, só olhares indiferentes. Até que parou um senhor – de quem ela nem sabe o nome – que se dispôs a ajudar. Empurrou o carro, ajudou-a a sair do “prego”. Quando tudo estava resolvido, ela, que tinha se mostrado muito forte até aquele momento, caiu num pranto inconsolável. A gentileza personificada naquele senhor de branco, permitiu uma conversa carinhosa. Encostado no carro, ele disse para ela: “- As pessoas que estão passando e que não sabem o que está acontecendo, o que elas poderão pensar? A senhora aqui do meu lado, chorando, talvez elas imaginem que eu tenha terminado o namoro, e lhe deixei desesperada.” Naquele momento ela riu. Agradeceu pela ajuda e deu partida no carro. Nunca mais o encontrou. Mas o gesto, a gentileza, isso ficou guardado.

Fleal
Enviado por Fleal em 24/11/2020
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