A Crônica do Nada

A primeira semana da nova década veio assim: não pedi nada, não criei expectativas, não me deixei levar por superstições e fiquei vendo filminho, de pijama, nas primeiras 48 horas do ano. Pela primeira vez em tempos dormi logo depois da “esperada” queima de fogos. São quase 30 anos de história e o meu corpo já se cansa mais rápido que o normal.

Não usei calcinha verde para atrair a sorte, nem rosa para atrair um amor. Nem lembro se usei calcinha, na verdade. Também não joguei na Mega-Sena da virada e repassei adiante a minha escassa possibilidade de ser uma nova milionária. Vi os fogos, tomei mais um gole de cerveja, beijei minha mãe e deitei na minha cama quentinha. Nada de tumultos, barulhos estridentes ou falsas felicitações de um “próspero ano novo”.

Decidi batizar carinhosamente esse relato de “a crônica do nada” por começar a perceber que algumas práticas da vida se ressignificam velozmente com o passar do tempo. De uma hora para a outra os planos e as prioridades mudam – e que bom que mudam.

Chega um momento nessa trajetória em que a juventude e a maturidade – para não falar velhice – são separadas por uma breve linha tênue e isso causa um espanto considerável. Somos criados desde o início para o otimismo, a prova disso é a alta demanda de "coachings" quânticos e motivacionais a cada esquina. Também somos incentivados ao hábito de viver como se não houvesse o amanhã, reflexos do “Carpe Diem” árcade e do professor John Keating, sem dúvidas.

Cultivamos a prática de comprar pequenas alegrias, e em troca disso objetificamos pessoas, personificamos objetos e somos a vergonha do cosmo. Ok... Talvez Nietzsche tenha me discipulado e até doutrinado (termo modinha dos embates sociopolíticos da atualidade), mas a verdade é que o processo do envelhecimento causa reflexão, inquietude e solitude.

Medos de partidas, medo de chegadas... Envelhecer é paradoxal. Tanta autonomia conquistada, um quadro cheio de diplomas na parede e algumas doses de choro escondido no banheiro. Por quê? É vedado ao adulto o direito fisiológico de chorar? Nos encorajam a vencer ao passo que nos acovardam. É sobre isso que transcendo o pensamento enquanto troco essa ideia e tomo um café.

E claro, há o saldo positivo de crescer, amadurecer e contrariar as estatísticas. Cada um liberta a criança louca que mora em si como pode. O que seria da vida sem algumas pequenas doses letais de experiências momentâneas?

O desfecho, meu amigo, é constatar por a + b que a vida é um barco azulzinho à deriva em alto mar: o tudo e o nada andam de mãos dadas num redemoinho de possibilidades. O único controle que está ao alcance é o da TV Smart parcelada em 12 vezes na “Black Friday”. A nós cabe apenas alternar com sabedoria as doses de café e álcool, pagar os boletos preferencialmente antes dos vencimentos, beber bastante água e frequentar assiduamente um terapeuta de estimação.

Lívia Couto
Enviado por Lívia Couto em 07/01/2021
Reeditado em 07/01/2021
Código do texto: T7153883
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