Resíduo

“De tudo fica um pouco...”. Assim começa o belo poema que dá título a esses escritos, que tomo emprestado do poeta Drummond. Continua ele com um pedido “abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória”, e depois de versejar sobre tantas coisas que ficam, encerra dizendo que “fica sempre um pouco de tudo...”. Apropriei-me desses versos para ilustrar o que nos fica quando lemos um livro, ouvimos uma música, assistimos a um filme ou participamos, enfim, de alguma experiência. De tudo realmente fica um pouco. Mas, o que resulta, o impacto que obras de arte ou acontecimentos vividos têm sobre as pessoas, não é o mesmo em todas as que tomam contato com essas obras ou fatos. Ficam impressões maiores ou menores, dependendo muito do observador e até do seu estado de espírito no momento. Além do que, como diz Barack Obama em Uma terra prometida, as coisas que vemos “por mais lindas que sejam nem sempre correspondem à experiência vivida”.

E foi o que se deu comigo ao assistir, algum tempo atrás, o filme Uma noite em 67, documentário sobre “o festival que revolucionou a música brasileira” – tal como ele é anunciado. Trata-se da história do III Festival de MPB, realizado pela TV Record, que revelou nomes como Gilberto Gil (Domingo no Parque) e Caetano Veloso (Alegria, Alegria). É um belo documentário que traz de volta à minha lembrança de adolescente, “televizinho”, já embotada na minha memória quase septuagenária, um período que acompanhei de perto. Entre tantos depoimentos interessantes captados para o documentário, confirmando o que disse Drummond, o que mais me tocou, e ficou, foi o do compositor Nelson Motta. Na disputa ele concorria, em parceria com Dori Caymmi com a bela O cantador (“Amanhece preciso ir, meu caminho é sem volta e sem ninguém...”) interpretada por Elis Regina, que ganhou naquele ano o prêmio de melhor intérprete.

Segundo a sua narração, ao subir o palco para interpretar Alegria, Alegria, Caetano Veloso não empolgou de saída. A platéia indiferente, talvez até emitindo alguns apupos. E ele diz: “Para provar que o ser humano não vale nada, eu fiquei feliz com aquilo. Seria um concorrente a menos”. Só que, à medida que a canção ia fluindo, a plateia passou a empatizar com o baiano e pôs-se a cantar junto com ele e a aplaudir. E volta Nelson Motta a falar: “E para provar que o ser humano vale alguma coisa, associei-me ao público, aplaudindo com vontade”. Foi como se ele próprio dissesse, tal qual os últimos versos da música: “eu vou, por que não?”.

As pessoas são assim. Controversas, como o personagem de Ferreira Gullar em seu poema Traduzir-se. Temos o que há de melhor e o que há de pior. O grande desafio é que prevaleça a nossa melhor parte. É um exercício diário que temos que fazer. E já que eu estou tomando emprestado as ideias alheias para ilustrar as coisas que ficam, aqui vai mais uma. Essa é de Nara Leão, apresentada em sua bela biografia escrita por Sérgio Cabral (não o filho, preso, o pai). Depois de um desentendimento com Aloysio de Oliveira, responsável pela produção em discos por alguns dos melhores momentos da Música Popular Brasileira, ela, que lhe havia encaminhado uma carta não muito amigável, sem merecer resposta, tomou a iniciativa de lhe escrever uma outra missiva, que assim começava: “Vamos fazer as pazes? A vida é curta para a gente brigar com quem gosta”. Simples assim. Basta fazer uma forcinha que o nosso lado bom acaba por prevalecer, deixando ficar, em nossas relações, um pouco de bom e de bem. Basta querer.

Fleal
Enviado por Fleal em 16/02/2021
Reeditado em 16/02/2021
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