Aquela velha partitura

Estive folheando um calhamaço de partituras, tão antigas quanto a maleta de couro marrom que as guardava. Procurava uma velha canção que não encontrava em lugar algum, já que não me vinha na memória nem o título nem o autor.

Após a aposentadoria precoce, por conta de um problema na cervical, acabei deixando a engenharia civil e me ajeitei em um hotel, onde tocava piano às quartas-feiras e aos sábados à noite, coisa de quem não queria ficar em casa, especialmente depois do divórcio.

Aliás, fase difícil na vida. Minha ex-mulher chegou para mim um dia e, sem mais nem menos, anunciou que havia outro homem – um velhote de setenta anos, porém riquíssimo, que teria deixado Eduarda enfeitiçada, totalmente apaixonada.

Nessa ocasião, fiquei ali, como paralisado, sem dizer uma palavra, olhando para o piso da sala, enquanto ela, em um monólogo interminável, apresentou suas muitas desculpas – nenhuma que tivesse sentido, a não ser o amor extremo pelo brilho das pedras preciosas e da conta bancária poupuda, sem o sufoco dos casais normais -, enquanto carregava uma mala de rodinhas, que ia puxando em direção à porta.

Não satisfeita de encher minha cabeça com sua ficção sentimental, estacou na porta, voltou-se para mim e disse:

- Não fique triste, há de encontrar alguém que lhe mereça!

Não nego que tenha sido pego de surpresa, e, confesso que fiquei com muita raiva por conta de como o rompimento se deu. Apenas dei graças a Deus de não ter sido abençoado com filhos desse casamento.

Voltando às partituras, não encontrei aquela que procurava, mas havia uma, rascunhada em folha de agenda comercial, que me chamou a atenção: era uma canção de minha autoria, que havia feito para uma moça, na verdade, minha primeira namorada, e que tinha ficado ali, esquecida pelo tempo, em um bolso da mala.

À música, dei o título de Os Belos Olhos de Paola.

Lembrei de Paola, um encanto de menina, que havia passado por minha adolescência como um sonho encantador. Porém, o namoro – naquela época bem mais romântico e recatado que hoje em dia -, acabou durando pouco. Acabamos brigando por uma bobagem e nos afastamos. Não demorou, ela se mudou do bairro onde morávamos, deixando um buraco no meu peito juvenil.

Nunca mais tivemos contato, desde então.

Decidi levar a partitura para o hotel, onde executei a música no piano de cauda, diante da aprovação dos hospedes e funcionários que circulavam pelo saguão.

Por vários dias, carreguei a partitura de casa, onde também tocava a canção no velho piano de armário, para o hotel. Logo já havia decorado a música.

Fora os dias que tocava no saguão do hotel, acabava ganhando algum a mais nos dias que era contratado para algum evento no salão nobre. E foi em um desses eventos que o destino acabou me surpreendendo.

Fui contratado para uma recepção, onde a dona da famosa marca de roupas receberia uma homenagem em ocasião ao seu aniversário.

Havia sido orientado por um dos diretores da empresa, que tocasse alguma coisa assim que ele desse a deixa, que era quando a aniversariante chegasse ao salão.

- O senhor gostaria de escolher a música? – disse, estendendo algumas folhas de partituras.

- Escolha uma que ache adequada – respondeu, batendo em meu ombro -, vou confiar em seu bom gosto!

Acabei decidindo tocar a música que havia composto para Paola, que, modéstia à parte, havia ficado muito boa!

Assim, de longe, um dos funcionários fez um sinal de que a moça havia chegado, e o diretor deu ordem para que eu começasse minha performance.

Comecei, então, a tocar. Toquei com a mesma paixão com que costumava tocar em casa e no hotel. Era como se fosse a única coisa realmente boa que havia feito na vida, e que me fazia recordar uma época mágica.

De longe, às vezes, olhava para a mulher, que caminhava devagar, recebendo o aplauso dos convidados. Queria ver sua reação. Vi que estava comovida. Percebi, apesar da miopia, que limitava muito minha visão de longa distância, que era bonita.

Porém, conforme eu ia olhando para ela, revezando o olhar para o piano, me pareceu que aquela mulher ignorava totalmente a multidão nas mesas. Olhava fixamente para onde eu estava.

Depois, foi lentamente se aproximando, e parou diante de mim.

- Rodolfo? – disse ela, com a voz trêmula -, você?!

Foi quando me voltei para o rosto de Paola, parando automaticamente de tocar, diante daquela surpresa.

Sim, para minha surpresa, Paola Guimarães, minha primeira namorada, estava ali, diante de mim, com o mesmo semblante, o mesmo olhar encantador, a mesma boca bem torneada, e o mesmo sorriso iluminado.

Disse que, ao ouvir aquela canção, pareceu estar em um sonho. Nunca mais esqueceu a melodia, desde que era adolescente. Ouvi-la novamente foi algo totalmente inesperado, e ficou ainda mais surpresa quando viu quem era o pianista.

Desde aquele evento, passamos a nos ver todos os dias, considerando que se passaram cinco anos desde que isso aconteceu.

Já não toco mais piano naquele hotel. Aquela festa acabou sendo, como diz aquela velha expressão, um divisor de águas na minha vida!

Eu e minha Paola estamos juntos desde então, exibindo orgulhosos as alianças no anelar esquerdo, enquanto empurro o carrinho das gêmeas pelo parque. E tudo graças àquela velha partitura, que jazia em uma antiga maleta, mas agora mora nas profundezas do meu coração.