Assoalho pélvico

À minha irmã, Poliana Araújo

É preciso reconhecer a beleza sonora de algumas palavras. Na infância, eu era capaz de ver as cores dos nomes das coisas, à medida que eu ia ouvindo e aprendendo, de sentir-lhes as texturas e cheiros. Começou com os dias da semana, quando me dei conta de que o tempo era medido e dividido. As quintas-feiras tinham um tom lilás,  estridente, esse 'in' agudo  não poderia ter outra cor. Brancas eram as quartas; verde-claros, os domingos. Minha memória não dá conta dos outros dias, talvez os sábados tinham algo de alaranjado, uma palavra ensolarada. Redenção, palavra bonita, nome de uma cidade vizinha à minha, cujo sentido nobre eu não poderia adivinhar, parecia-me um objeto grande, amarronzado, parecido com silos de armazenar grãos.  Institivamente, talvez eu adivinhara a magnitude do termo. Era uma palavra bonita de ouvir, quando minha mãe 'precisava ir à Redenção" resolver coisas do mundo misterioso dos adultos, eu ficava certa de que traria cajuzinhos de açúcar na bolsa.

Canteiro é uma palavra tão fresca que sinto, ainda hoje, alguns respingos na face quando a escuto, o cheiro de terra molhada, de mato fresco, de adubo de vaca. Faço uma aposta, sem consultar a etimologia: talvez seja aparentada de cântaro, que também me remete ao som fresco da água a correr.

Se há as palavras belas, elegantes qual garças equilibradas em suas pernas finas, há também as feias, as engraçadas por natureza, as pegajosas, as tristes. Diz minha filha que há diferença entre merda e bosta. Merda é pastosa, bosta é mais firme. Culpem a fonética, caros leitores. É o que o som das palavras sugere. Pereba, prurido e pútrido fedem. Deve haver algo de errado  com a letra P, perdão, Poliana. Não posso levar a sério alguém chamado Ximbinha, deve ser o som de "xi": maxixe, cachimbo, chibata, chicote, caxingar, xixi. Há algo de cômico, de infantil.

E há palavras tristes, a que associo ao som da letra u: viúva, lúgubre, fuligem, urubu, azul. Ninguém passa incólume por um verso lúgubre. É mórbido e paroxítono. Esdrúxulo.

Tal mania de sentir as palavras parece ser mal de família,  fato que até pouco tempo atrás eu ignorava. Minha irmã, enfermeira, pegou gosto por uma expressão que é, aos meus olhos, nada poética: assoalho pélvico. Imagino que, no seu labor, de propósito, repete a palavra às pacientes nas consultas ginecológicas, dando-lhes instruções demoradas, repetindo-as, comemorando quando a paciente tem algum grau de surdez, só para sentir o prazer de pronunciar, mais uma vez, segundo ela, a expressão mais bela da língua portuguesa, aveludada, a fazer círculos e cócegas na boca: assoalho pélvico. Assoalho, para mim, cheira a pano de chão e desinfetante. Fazer o quê, leitor?  Há doido para tudo neste mundo,  até para ouvir em cores.

Miss Araújo
Enviado por Miss Araújo em 27/04/2021
Reeditado em 28/04/2021
Código do texto: T7242308
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