Uma Guerreiro nata
Quando se casou e tomou o sobrenome do meu avô, minha avó apenas recebeu formalmente uma alcunha que lhe pertence desde o nascimento.


               
               Minha mãe adora uma crônica do (diz ela – jamais chequei a informação, mas confio) Moacyr Scliar que fala sobre nomes que condicionam os destinos das pessoas. Meu avô materno, Pedro Rocha, foi mineiro na juventude; meu avô paterno, Nery Velho Guerreiro, descende de uma geração de homens e mulheres particularmente longevos e trabalhadores. Há mais de cinquenta anos, meu avô Nery desposou uma jovem Ivone Rosa de Souza, desde então conhecida como Ivone Guerreiro.
               Quando se casou e tomou o sobrenome do meu avô, minha avó apenas recebeu formalmente uma alcunha que lhe pertence desde o nascimento. Irmã mais velha entre três, perdeu os pais ainda na juventude, mas não abandonou os estudos e, mais tarde, tornou-se professora estadual concursada. Já com os filhos crescidos, concluiu a graduação em Educação Artística com foco em música, paixão que meu pai herdou. No caso da minha avó, entretanto, diria que não é tão somente uma paixão – ela tem um dom, foi feita para isso. Sem receio de ser arrogante por tratar-se da minha avó, afirmo que a voz dela é a coisa mais linda que há. Sinto muito por todos que nunca a ouviram cantar ao vivo; a voz da minha avó é uma daquelas coisas que nos fazem entender como Deus criou a beleza para sensibilizar nossos corações.
               Antes da discussão sobre feminismo sequer pensar em chegar ao brasileiro médio, minha avó, mulher e mãe, através da sua determinação já lutava contra o que tentavam impor a ela. Com o passar dos anos, mais obstinada e engajada ficou. Já foi sócia – atuante – de todos os clubes de mães da cidade, e por suas mãos já passaram inúmeros cursos de artesanato gratuitos para mulheres de baixa renda, bingos beneficentes, enxovais de jovens meninas e alimentos para barrigas vazias. Se eu dissesse que sei o quanto minha avó fez e dedicou da sua vida ajudar os outros, mentiria. Muito foi feito sem que os outros soubessem e assim permanecerá. A generosidade dela é tão abundante que se estende não só aos seus amados filhos, netos, amigos e amigos da comunidade: vó Ivone é conhecida por seu amor por gatos. Adota todos que aparecem no pátio, dá-lhes nomes, cozinha para eles. Já chegou a ter mais de vinte na garagem de casa, sem contar os filhotes.
               Estar perto da minha avó sempre me deixou muito feliz – lógico que ela também é boa com crianças. A única coisa que me deixa triste é que, ao escrever esse texto, várias vezes precisei me corrigir, pois estava descrevendo minha amada avó no pretérito.
               Há três anos, minha avó sofreu um infarto. O sinal amarelo se acendeu. De lá para cá – e cada vez mais rápido –, pequenos problemas de saúde foram se acumulando até virarem um problema maior e culminarem em cinco dias muito difíceis após uma internação. De todas as vezes em que achei que ia perdê-la, foi a mais concreta. Liguei para a minha terapeuta e disse “olha, minha vó tá morrendo”. Chorei no telefone conversando com a minha mãe. Comecei a ler sobre superação do luto. Dois dias depois minha avó deu sinais de recuperação. Ivone Guerreiro desconhece o conceito de “cair atirando”; superou-o. Minha avó cai atirando, atira deitada, levanta, se equilibra nas muletas e atira mais um pouco. Que mulher digna de carregar um nome, meu Deus. É necessária uma força psicológica que poucos podem se gabar de possuir para enfrentar assim uma doença prolongada, e minha avó a possui despretensiosamente. O tecido do qual minha avó é feita possui muitos fios de bravura em sua trama.
               Se eu fosse meu pai (que herdou tantas, tantas coisas boas da minha avó) ou minha dinda (outra mulher que carrega o sobrenome Guerreiro com propriedade), eu teria muito orgulho de ter sido gestada por Ivone Guerreiro. Na verdade, acho que eles têm, assim como eu tenho de ter sido gestada pela minha mãe – uma Rocha, nada menos, que é tanto firmeza quanto abrigo – e de ter tantas mulheres fortes na minha árvore genealógica. O único crime dessas mulheres é que elas não são eternas e eu cheguei depois. Com vó, isso dói mais ainda: vó é mãe duas vezes. Se mães deveriam durar para sempre, o que dizer das avós, que suspeito que Deus tenha criado unicamente para afagar seus pequenos filhos no plano físico...
               Decidi, agora, que vó Ivone jamais será descrita no pretérito. Ela é uma árvore da vida e nunca será meu passado. Vó Ivone vive em sua carne hoje, como vive também na carne do seu filho, meu pai, na minha carne e na da criança que estou gerando. Viverá nos filhos dos meus filhos, nos filhos dos meus primos, e nos filhos desses filhos depois. Talvez Deus tenha assim, à sua maneira perfeita, feito as mães eternas, e nós é que não entendemos muito bem.
               Isso ela sabe, mas digo para que os outros saibam também: amo-te, vó. És parte de mim e não existirá um único dia na minha vida em que eu não sinta orgulho e gratidão por isso.
               Deus te guarde, meu rouxinol precioso.