Não foi um dia tão ruim.

Eu acordei, e sorri, pois era sábado e a casa era toda minha. A Família tinha saído pra viajar, enquanto eu fiquei aqui em SP. Eu sempre tive uma vontade quase Jack Kerouac de viajar, mas não com a minha família, pois isso não seria nada beatnik. E também tinha mais um detalhe: eu amo a minha maldita, suja e triste SP. Essa vadia sempre me tratou mal, mas não consigo viver sem ela.

Por incrível que pareça, eu acordei cedo. Os dois gatos já estavam lá, na cozinha, esperando alguma coisa de mim. Servi os dois reizinhos(pois é isso que os gatos são: verdadeiros reis) e fiz o meu café. Comi um pão da chapa , e bebi um café com leite. Li o Dom Casmurro por um pequeno tempo, depois eu desisti de devorar aquele livro, pois a leitura estava muito chata.

Depois disso, olhei pra casa vazia e voltei a sorrir. Eu ia ficar sozinho por uns dois dias.

E claro, quando eu fico sozinho, apenas uma coisa bate da minha cabeça: vamos beber até cair.

Estava até pensando em ir pra casa das primas, porém, a vida sem dinheiro sempre é triste. Olhei pra minha carteira, e só tinha uns 15 reais. Mal dá pra comprar um fardo de cerveja.

"Tudo bem",eu pensei,"vamos fazer um jarro de caipirinha".

Fui no mercado, com os 15 reais. Eu queria encher a cara, mas economizar o dinheiro. Eu queria conservar aqueles malditos 15 reais, pois esse dinheiro era fruto do meu trabalho como músico, o que me dá um certo orgulho .O resto do dinheiro gastei com cerveja, gibis do Conan e cordas pro meu violão. Só tinha aqueles 15 reais como troco.

De qualquer forma, fui pro mercado, entrei diretamente no corredor das bebidas alcoólicas. Pensei em comprar uma garrafa de Chalise rose suave, uma merda barata, mas o vinho não ia sustentar a minha bebedice. Decidi comprar uma garrafa de uma pinga chamada Tulinha. Estava 5 reais, e era uma garrafa de plástico. Fiquei com medo, mas mandei um foda-se e comprei. Sobrou 10 reais. Poderia beber um jarro de caipirinha por dia.

Voltei pra casa e graça a Deus ainda tinha alguns limões conservados. O meu ato seguinte foi colocar aqueles uns três limões no liquidificador, junto com a minha garrafa de pinga barata, algumas colheres de açúcar e terminando a orgia entupindo o resto do liquidificador com gelo.

Liguei o liquidificador. Deixei tudo triturar por um minuto. Desliguei e coloquei aquele 1litro e meio de caipirinha num jarro. Tinha que beber rápido, antes que ficasse azedo.

Mas eu não estava com pressa. Era um dia agradável e bonito. O céu estava razoavelmente cinza e começou a aparecer uma chuva forte, porém agradável. Fiquei com a porta da sala aberta, deitado da entrada dela, com a chuva beijando os meus pés. Yes, eu estava lá, bebendo o meu jarro de caipirinha, dando carinho da minha querida litleblack(a minha gata) e lendo as aventuras de Conan. A bebida descia direto, sem ritual, e de uma forma muito agradável.

O efeito já estava aparecendo, mas de uma maneira tímida. Eu estava curtindo as aventuras de Conan. Conan era o cara. Ele sabia das coisas. Ele sabia viver. Ele vivia altas aventuras, matava os magos filhos da puta, e terminava as histórias comendo umas gostosas e bebendo vinho. Quando ele virou rei, foi apenas mais um barato pra ele. Fenomenal.

Mister No era outro cara que eu leio bastante. O sujeito que eu sempre quis ser. Ele é casca-grossa, mas vulnerável. Tinha um avião fudido, mas não tinha medo de se meter em encrencas. Ele também gosta de mulheres e de encher a cara. Ele é um ex-soldado americano vivendo em Manaus, dos anos 50.Ele sofria de vez em quando, pois não conseguia beber um whyski decente aqui no Brasil.

Eu estava bebendo e bebendo. Lentamente. Curtindo as aventuras, escapando do grande vazio solitário que é a minha vida. Yes...a minha vida, cheia de problemas, dividas e de pouquíssimos amigos. Tive algumas mulheres, mas não foi nada demais. Algumas me desprezaram, outras eu desprezei, só a minha litleblack me compreende. Nunca tive a habilidade de viver, diferente do Conan e Mister No.

Porém, no silêncio da sala, o telefone começou a tocar.

"Porra",eu pensei, "Quem é o filho da puta que está querendo me incomodar?".

Bebi mais um pouquinho de caipirinha, me levantei. Andei até o muro onde estava telefone, ainda segurando o meu jarro. Atendi. Era o André.

Hohoho!Grande Nicolas! Como está?

Disse o André, com a sua voz de barítono ,falando de um jeito quase teatral. O sujeito é uma figura.

Fala, seu arrombado! Porquê diabos você ligou pra cá? Você sabe que agora eu tenho um celular?

Falei eu, fingindo estar bravo. Era tudo um teatro, como sempre.

André ficou supresso.

O que? Você tem um celular agora?

Sim senhor.

Tem Whatsapp?

Sim senhor.

Charles...não reconheço mais esse mundo. Hahahaha!

Riu ele, como um palhaço demente. Uma figura.

O que cê quer? Seu canastrão do caralho!

Oh...meu amigo Nicolas...não fique bravo...hehehe...como anda a vida de músico?

Uma merda.

Isso que é ficar tocando nos bordeis, cantando coisas como "Porquê as Mulheres Choram".Hehehehe!

Vai se ferrar!

Oras, Nicolas! Tenho uma notícia muito boa ,e é meio que relacionada a sua trajetória errante como músico.

Eu peguei o telefone, sentei no sofá e continuei bebendo a minha caipirinha. Fiquei com o telefone preso do meu ouvido, esperando a tal notícia boa.

Fala, meu chapa!

Bom...

André deu uma pausa propositalmente dramática. O veado lê muito Shakespeare e tem essas frescuras. Uma figura.

...Sabe o seu amigo Chris? O nosso amigo em comum?

Eu dei uma risada cínica. Depois respondi.

O correto seria dizer "o nosso inimigo em comum"! Eu não quero saber nesse espanhol chato do caralho!

André deu uma risada igualmente cínica e continuou...

Mas acho que você vai querer saber dele. Veja só: ele não esta mais no Brasil. Voltou pra Espanha.

Eu fiquei supresso, mas nem tanto.

Deixe-me falar um pouco sobre esse Chris.

Chris era um amigo do André, que depois virou um amigo meu durante 5 anos. Ele, assim como eu, é um músico. Porém, ele canta música trap(é assim que se pronuncia?) e pop. Chris é um fanático do Michael Jackson, isso vocês tem que saber. O coitado ama bastante o sujeito, ama tanto que as vezes irrita. As vezes, ele só fala do Michael. Michael pra lá e Michael pra cá, com o seu sotaque de gringo. Era um sujeito na escola dos 40 anos, mas aparentava ter mais. Era magrinho, os últimos anos em que o vi ele piorou esteticamente, estava começando a ter cabelos branco e o rosto murcho. Ele dançava, imitava os passos e os trejeitos vocais (e faciais)do Michael. Era casado com um sujeito chamado José. Um homem baixinho, gordo, gente boa pra caramba.

No começo, Chris parecia ser um sujeito legal. Claro que a obsessão dele pelo Michael irritava, mas a gente ignorava(eu e o André).O fato de que ele tem o sotaque de gringo, o deixava engraçado, principalmente quando falava putaria e sacanagem. Porém, ao meu ver, ele ficou neurótico, e o que ele era chato, ficou mais chato ainda.O motivo?Não sei, talvez seja o fato de que ele,assim como eu,não era um músico famoso.

A gente tentou trabalhar juntos, gravamos no estúdio dele uma música minha. Gravei os vocais e as guitarras, enquanto ele fez a cozinha. Eu ia no estúdio dele quase todos os dias. A música já estava indo no processo de mix /master, mas não deu certo. Não deu certo, pois éramos muito diferentes como artistas, e o Chris achava que a visão dele sobre música pop pode ser aplicado a qualquer tipo de arte. Eu e o André achávamos que tratava-se de uma limitação intelectual ou pura chatice mesmo.

Trabalhando com ele, comecei a ter uma certa antipatia a sua figura, até mesmo comecei a achar que ele é meio estúpido. Por mais que ele gostava de falar sobre o Michael, o coitado não tinha mais nenhum assunto ou coisa interessante sobre a vida dele e assim por diante. Comecei a achar que ele é meio burro.

De qualquer forma, ele dentro no estúdio era meio bipolar. As vezes, era carinhoso pra dedeu e depois...ficava neurótico. As vezes me dava liberdade e depois falava toda hora como eu devia ser como artista.

Veja só Nicolas...veja só...segue o exemplo do Michael. Michael Jackson. Ele era o cara!O Bicho era foda!

Falava ele, com um sotaque de gringo espanhol. Uma mistura engraçada de portugaespanharola.

Você tem que parar com esse negócio de fazer músicas estilo Bob Dylan. Você tem que ser pop. Chega de poesia! Chega de música triste e pesada! Tem que fazer algo pra agradar as pessoas. Faça que nem os caras do Imagine Dragons!

As vezes, eu falava...

Olha, não tenho nada contra o Imagine Dragons, mas não é um tipo de som que pretendo fazer.

Aí o espanhol ficava maluco e neurótico.

Ah, então você não quer ganhar dinheiro, é isso? Quer ficar na merda pro resto da vida! Sim!Sim! Não quer ter o carro do ano.

As vezes, eu tentava explicar a minha visão, mas era em vão.

Não é isso, mas...

Mas o caramba! Tem que ganhar dinheiro! Tem que ganhar dinheiro! Tem que seguir os caras do Imagine Dragons! Você e o André não tem jeito...

Não que eu achasse ruim o sujeito me dar conselhos sobre minha vida fudida de músico. Mas as vezes, isso enchia o saco, pois todo artista necessita de uma certa liberdade. Que se foda o Imagine Dragons ou a tentativa de ser popular!E o Chris era insuportável, autoritário e as vezes carente demais.

Eu estava indo no estúdio dele quase todos os dias e isso começou a me cansar. Então peguei um dia de folga e fui pro cinema. O zé ruela ficou bravo.

Não acredito!Você parou de vir aqui pra assistir um filme do cinema?

Desculpe Chris, mas preciso sossegar e relaxar um pouco. O Cinema sempre foi uns dos meus grandes prazeres e já faz um tempinho que não vou...

Desculpa o caralho! Você me deixou sozinho por causa de um filme qualquer! Porquê você não me convidou pra ir junto?

Ué...você falou várias vezes que não gosta de cinema. Se fosse um filme sobre o Michael Jackson, eu até te convidaria.

Ah!Mas poderia ter me convidado!Porra!O que você está fazendo agora?

Respondi...

Estou tentando descansar.Amanha a gente se fala.

Não sei se amanhã vou querer falar contigo.

Então foda-se.

Respondi,já irritado.

Ele não acreditou o que falei.

O que? O que você disse?

Eu disse foda-se!

Depois disso, a nossa amizade nunca mais foi a mesma. Eu parei de ir no estúdio dele e o nosso projeto foi abortado. A nossa amizade, pra mim, meio que morreu.

Um dia nesses, fui pro cinema mais uma vez, e me esbarrei com o sujeito. Teve aquele silêncio constrangedor e tudo mais, porém tentei ser simpático. Ele estava a fim de desabafar.

O coitado se divorciou, pois nem o José aguentava as neuroses dele e as obsessões quase freudianas sobre o rei da música pop.

Aquele veado filho da puta! Ele tava nem aí pra mim!

Falou ele pra mim, todo nervoso. Antes ele chamava o José de papaizinho, depois do divorcio, começou chamar ele de veado filho da puta.

Nem eu e nem o André conseguíamos aguentar a chatice nesse espanhol canastrão. André acabou brigando com ele também e foi isso aí.

Porém, é claro, eu tive um certo receio de ir em certo lugares, pois tinha medo de me esbarrar com esse sujeito de novo. A notícia de André, era por fim, uma coisa boa.

Pois é,Nicolas! O nosso Chris não aguentou o Brasil! Depois do divorcio, ele tentou ser produtor músical, depois tentou ser professor de espalhol, mas fracassou em tudo!

Coitado! Não gosto mais dele, mas o sujeito não precisava se fuder tanto!

Não dá uma de Santo, Nicolas! No fundo, você não aguentava mais ele e a sua paixão sobre o Michaelzinho do caralho!

Eu dei uma risada. Me senti malvado.

Pois é, não consigo nem mais ouvir o Michael por causa desse sujeito. Muito desagradável.

Mas e a música em que vocês fizeram juntos? Não vai lançar?

Perguntou o André, meio curioso.

Não, foda-se. A música não é ruim, mas não está mixada e nem masterizada. E querendo ou não...trata-se de uma parceria. Melhor eu voltar a trabalhar sozinho mesmo.

André deu uma risada teatral.

Ok, meu trovador solitário! Eu só queria lhe dar essa notícia! Beijo do cú!

E o figura desligou o telefone.

Eu coloquei o telefone de volta pro gancho. Olhei pra litleblack. Sim, aquela gatinha preta, com olhos de coruja, olhando pra mim com doçura. Depois, o vizinho começou a colocar o som bem alto. Era uma música horrível, sendo tocada de uma caixa de som bem estourada. Não aguentei aquela merda.

Peguei um CD pirata do Vanilla Fudge e coloquei no volume bem alto.

O CD já começava com a música You Keep Me Hangin' On. Era um rock an roll bem fudido e maneiro, melhor que Michael Jackson(hahaha!).

Eu sentei no sofá, ascendi o meu charuto barato e bebi o resto da caipirinha, enquanto a chuva ainda cantava.

De fato, não foi um dia tão ruim.

CaiqueM
Enviado por CaiqueM em 02/05/2021
Reeditado em 04/05/2021
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