Um Dedim de prosa, com Rodelas de poesia

Fato certo como a vida é a morte, com a diferença de que com esta não nos acostumamos, no entanto. A pandemia tornou o processo ainda mais difícil à medida que impede os ritos necessários à despedida, os quais ajudam a processar a perda de um ente querido.

Entre anônimos e famosos, a covid abreviou a trajetória de muitos. Atores, atrizes,  cantores, intelectuais, comediantes, dentre outras categorias, encerraram precocemente suas carreiras, deixando o país órfão de ex-futuras manifestações artísticas. Nesse triste rol, encontram-se figuras da estirpe de Alfredo Bosi, Nicette Bruno, Agnaldo Timóteo, Paulinho, do grupo Roupa Nova, e outros mais. Receberam as devidas homenagens nas redes sociais, protocolares ou sinceras, e nas mídias tradicionais, nas quais foram destacados os trabalhos mais marcantes de cada um. Merecidas homenagens, reitero.

Nesse ínterim, todavia, algumas figuras ficaram numa espécie de limbo das homenagens póstumas. Não eram anônimos, é claro, mas talvez não famosos - ou reconhecidos - o bastante para receberem a atenção dada aos supracitados. Uma nota de rodapé aqui, uma breve chamada ali; discretas manifestações, eu diria. Isso aconteceu, por exemplo, com o sanfoneiro e cantor Dedim Gouveia, falecido recentemente. Pelo menos aqui no Ceará e acredito que em boa parte do Nordeste, Dedim era muito popular. Eternizou muitas canções na boca do povo e nos deu muitas aulas sobre ambiguidade e polissemia. Dedim nos ensinou que a linguagem tem camadas superficiais e profundas.

Presto aqui, portanto, minha humilde homenagem ao homem que tanto nos divertiu ( e corou nossa face também) com seus singelos versos sobre lendários personagens, como Seu Zé Priquito, Zé Pombão e o Lobisomem. Hoje, não é a falta do Zé Priquito que vai impedir a festa, mas o silêncio da sua safona, Dedim! Hoje, todo mundo na sua rua, em vez de sentir medo do lobisomem que come mulher e homem, sente a tristeza da sua precoce partida. Mais triste ainda porque foi seguida da morte de seu filho, em face do mesmo terrível vírus que emudeceu sua voz. Faço minha parte eternizando seu legado, ouço suas músicas em volume alto há algumas semanas e creio que meus vizinhos, involuntariamente, também o façam. Sei que me agradecem o favor.

Ao lado de Dedim Gouveia, dedico esta crônica também ao humorista Luiz Carlos Ribeiro, cuja morte por covid ocorreu em dezembro do ano passado. Se o nome não é familiar, a alcunha certamente o é: Rodela. Figura costumeira no palco do Programa do Ratinho no começo dos anos 2000, junto ao enigmático Marquito, Rodela deixou as noites dos brasileiros mais felizes com suas caras e bocas, literalmente. Ninguém passava incólume por uma careta do Rodela! O humorista não precisava abrir a boca para nos fazer rir, ao contrário, quanto mais fechada estava, mais hilárias suas caretas ficavam, à semelhança das bocas que algumas moças fazem hoje nas selfies para as redes sociais. À frente de seu tempo, Rodela ostentava protuberantes lábios antes do preenchimento tornar-se moda, unindo-os ao nariz em um (des) harmônico conjunto estético.  Li com tristeza que Rodela enfrentou a depressão e dificuldades financeiras nos últimos anos, irônica curva na vida de quem a ganhava fazendo os outros rirem.

Consola-me a imagem da dupla Dedim e Rodela no céu, com caretas e irreverentes canções, a animar os anjos e o próprio Deus. Certamente, tais paragens se tornaram menos enfadonhas com a chegada desses dois gigantes. Em vez de harpas, sanfona! Em vez de rezas, caretas.

Taca o pau, Dedim Gouveia!

Miss Araújo
Enviado por Miss Araújo em 04/05/2021
Reeditado em 04/05/2021
Código do texto: T7247686
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.