Superego social

Mudei-me para o interior e tive que me interiorizar. A liberdade é tolhida no interior de uma forma diferente dos grandes centros urbanos. E eu que pensei que aqui seria mais livre, longe da violência, do caos urbano, do estresse diário, do trânsito infernal e das cobranças do mundo moderno.

No começo, a liberdade veio. O tempo aqui parece durar mais, rende mais. Os casos de violência são bem isolados. Na grande maioria briga entre vizinhos, richa de rua e pequenos furtos. Sente-se menos refém do medo e portanto mais livre. Caos urbano é algo que aqui não se conhece. Em fim de dia pessoas conversam nas portas de suas casas, ligam o som do carro na rua enquanto tomam cerveja com os amigos, passeia-se com a família calmamente pelas ruas, as pessoas se cumprimentam. As preocupações não se acumulam, não há o estresse crônico, então, mais liberdade.

Trânsito só em dia de festa, mas mesmo assim é bem vindo, vira passeio antes do “esquenta” pra balada. É agradável. Com o carro devagar dá pra ver quem é que já chegou, se aquela gatinha do “esquema” já está lá. Diversão garantida, mais liberdade.

Em cidade pequena, patrão e empregado vão para as mesmas festas, freqüentam o mesmo restaurante, compram pão na mesma panificadora. As hierarquias sociais não deixam de existir, mas as linhas que as separam são bem mais tênues, gerando liberdade.

Doce ilusão.

O Homem só é livre na solidão. Não a solidão dos grandes centros urbanos, a do sujeito só na multidão, mas a solidão real, aquela quando não se está em contato com nenhum outro ser humano. E eu descobri isso no interior.

Aqui, as relações sociais são tão intensas que você é podado a todo instante. É como se de uma hora para outra você deixasse de ser só mais um na multidão para ser o centro das atenções.

Sabe o que me lembra morar aqui no interior? Uma grande família de mafiosos. Todos se conhecem, fingem respeito e se ajudam mutuamente, mas são poucos aqueles que se gostam de verdade.

No interior se você “fica” com alguém e no dia seguinte resolve dividir sua alegria com um bom amigo, você chega tarde para contar. Não vá cair na rua, dia seguinte, todos ainda estarão comentando a respeito do seu tombo. Invasão de privacidade, menos liberdade.

Se você por acaso perdeu a hora um dia e saiu mais tarde de casa, alguém terá visto você sair àquele horário. E se, mais tarde, por outro motivo qualquer, você perder seu emprego, seu pretenso futuro patrão achará que você vai chegar atrasado no serviço e concluirá ser melhor não te contratar porque além do motivo que a cidade inteira já sabe sobre sua demissão, o atraso provavelmente também é um dos fatores. Intrigas e fofocas, menos liberdade.

E os hábitos de cidade grande, então? Aqueles que por viver tanto tempo com eles, nem se percebe que são hábitos típicos de quem não é do interior.

Você sai do trabalho, exausto, o sol ainda no céu por causa do horário de verão, e resolve parar um pouco para tomar um choppinho sossegado. Na cidade grande, se você reparar, haverá outras pessoas fazendo o mesmo, em grupos ou sozinhas como você. Normal. E, aliás, ninguém repara, afinal, você é só mais um. No interior, você deve ser um “mala”, afinal como pode sair do trabalho sem ninguém pra te acompanhar naquele choppinho? Ou então, deve ser bebum. Claro. Mal sai do trabalho e já vai beber. Direito de curtir a vida sozinho não existe, fim dessa liberdade.

Andar a pé. Quantas pessoas sozinhas andam nas grandes cidades desse país por opção ou falta de opção? Normal. No interior não é. Será que ele não tem dinheiro pra ter carro? Será que não tem amigos? Será que não faz nada da vida pra andar tanto a pé? Deve ter brigado com alguém e resolveu espairecer... Aqui, as pessoas reparam em você. Você é cercado de paparazzos interioranos todos os dias. Mais liberdade tolhida.

Marcar para sair, só se for em grupo. Ninguém marca no local para onde vão. É sempre no local de onde se vai, e de preferência daquele que tem carro, se esse não fizer um tour apanhando os outros. A frase “nos encontramos lá, então” tão comum na cidade grande, aqui é pedir para que a cidade fale mal de você.

Se você mora sozinho, aprenda a cozinhar, porque sair para almoçar fora sozinho no final de semana ou mesmo pedir comida que claramente é para apenas uma pessoa, é um sinal de que você não deve ser “boa pinta” já que ninguém está querendo comer contigo. Aliás, estar sozinho, consigo mesmo, em determinados momentos tem ar de criminoso na cidade pequena.

Quer ficar sozinho? Nos grandes centros urbanos fique em casa, ou então vai passear, mas sem avisar ninguém. Pegue um cineminha sozinho, jante naquele lugar agradável que você gosta, vá no shopping ver vitrine. Você é livre pra isso. Aqui, não se tranque em casa, você deve ser louco, afinal nem tomar ar, tomou. Não vá passear na rua, nem comer sozinho, pois certamente encontrará alguém conhecido. Saia da cidade, é o único jeito. Liberdade de ir e vir, tolhida.

O que acontece no interior é que os preconceitos que nas grandes cidades é camuflado, aqui ficam à mostra. Tudo o que você faz ou deixa de fazer, veste ou deixa de vestir, come ou deixa de comer, com quem fala ou deixa de falar, com quem costuma sair, onde costuma ir não interessa única e exclusivamente a você. Na cidade grande a política do ignorar o que os outros pensam a seu respeito funciona, já que sua vida só interessa a você e às pessoas mais íntimas de seu convívio. No interior, o que os outros pensam ou deixam de pensar a seu respeito te interessa e te importa, vira preocupação constante, já que pode ser benéfico ou prejudicial não só à sua vida social, mas à sua vida familiar e profissional também. Liberdade de escolha, tolhida.

Aqui, descobri que a liberdade não existe em meios sociais, sejam grandes ou pequenos. As prisões são apenas de naturezas diferentes. O controle do medo, da frustração, da pressa, do não envelhecer, do vencer na vida, do pagar as contas nas grandes cidades. O controle social repressor tolhendo seu modo de vida no interior. Agora entendo porque muita gente se muda para as capitais, fugindo do superego social para a repressão do próprio superego. É mais fácil, provavelmente, para a maioria.

É... no interior, para sobreviver, tive que me interiorizar.

David Scortecci
Enviado por David Scortecci em 17/11/2005
Código do texto: T72722