A Felicidade Simples e Um Paralelo Sócio-temporal da Infância

Nesse final de semana, tive uma experiência inusitada: fui à casa de um primo cuja infância foi recheada dos melhores brinquedos. Durante nossa infância, que foi contemporânea, houve uma fase em que um de nossos brinquedos preferidos era um de montar e desmontar, e era possível construir casas, carros, hospitais, e compor pessoas com diferentes penteados ou chapeis (bonés, capacetes, etc). O brinquedo vinha numa caixa, desmontado e com um manual de instruções que explicava como montar algo específico, como um corpo de bombeiros, por exemplo. E na caixa já vinha ilustrado o que a gente ia montar, de forma que pudéssemos escolher e antever o que iríamos construir, para posteriormente brincar – não que o ato de construir já não fosse uma brincadeira. Como o meu primo tinha vários desses brinquedos, nós construíamos o que o manual propunha, brincávamos com o resultado dessa construção, e depois desmontávamos e misturávamos as peças de um brinquedo com as dos outros, construindo o que viesse à nossa imaginação ou o que as peças nos conduzissem a construir. Depois guardávamos as peças numa gaveta.

Agora, estamos crescidos e passaram-se anos, mas, para minha surpresa, e com o auxílio de uma criança que visitava a casa do meu primo, descobri que essa gaveta ainda existe, guardando as mesmas peças dos brinquedos que povoaram nossa infância.

Vendo a criança entretida com a brincadeira, resolvi ajudá-la, montando coisas que ela depois pudesse adicionar à sua diversão. Fiquei feliz com o entusiasmo da criança com as coisas que eu improvisava com as peças já envelhecidas do brinquedo. Depois a criança foi embora e eu continuei brincando, inclusive no dia seguinte, e também fiquei muito empolgada ao conseguir montar uma pessoa inteira, cujos braços e pernas estavam jogados na gaveta, espalhados no meio de outras peças, e me surpreendi com a minha felicidade simples.

Mas com toda aquela fartura de brinquedos na minha frente, inclusive numa casa onde não se habitam mais crianças, não pude deixar de pensar na situação social do país. Quantas crianças não possuem brinquedos? E como poderiam, se às vezes não tem nem o que comer? Poderiam até ter brinquedos, mas teriam energia para brincar? Num dos países mais criativos do mundo, não seria falta de improviso a ausência de brinquedos? Pois na exposição de um projeto de um curso universitário de biologia, vi brinquedos feitos de material reciclado. Mesmo as crianças de antigamente, numa era menos industrializada, construíam seus próprios brinquedos, como bonecas e carrinhos de rolimã. Hoje, em detrimento da criatividade e da convivência social, o pique esconde, a bolinha de gude, a pipa e outras brincadeiras – que ainda sobrevivem somente no interior e na periferia de grandes cidades – foram substituídas pelo vídeo-game. O que ainda significa uma elitização da diversão: qualquer criança, de qualquer classe social, pode participar das brincadeiras que hoje estão em extinção, mas nem todas podem adquirir um aparelho eletrônico.

As crianças de uma classe social desprivilegiada podem sentir-se marginalizadas por não possuírem este ou aquele brinquedo, mas exercerão a criatividade e o convívio social. As crianças criadas em condomínios, além de possuírem um possível déficit nessas duas habilidades, principalmente na segunda, às vezes têm como única “área livre” para brincar a garagem de seu prédio, que pode tornar-se a forma reduzida de um campo de futebol. Assim, essas crianças ficam também limitadas espacialmente.

Obs.: crônica já publicada no Diário do Vale.

Helena Cirelli Guedes
Enviado por Helena Cirelli Guedes em 17/11/2005
Código do texto: T72946