ASAS QUEBRADAS

O leitor deve saber que umas das piores experiências é ficar internado em um hospital. Horas que não passam, dias que se confundem, expectativas frustradas de alta, isso é só parte do pacote. Digo isso não porque já tenha ficado internado, mas pelo que senti nas visitas a amigos e parentes que passaram pela situação. O que deve trazer algum alívio é o horário da visita, pode ser até daquele amigo menos chegado, de um desconhecido que passa dando um bom dia, tudo é bom para quebrar aquela pesada rotina e nos reconectar com o “mundo dos saudáveis”.

Dia desses fui visitar um parente internado. Observo o olhar das pessoas e imagino o grau de saudade e preocupação de cada um. Quando a entrada é liberada, seguimos todos por aqueles corredores frios, a procura dos quartos indicados. Percebo como a vida é um sopro, como a liberdade que a saúde traz a uma pessoa é algo sagrado e valioso. Enfermeiras, céleres, passam por mim e me despertam o respeito profundo por essa profissão. Aplaudo, internamente, cada uma delas pela dedicação.

Ao adentrar o quarto, vejo que os leitos já estão repletos de visitantes ao lado dos enfermos, uma pequena agitação inicial se avoluma e já me posiciono, ligeiro, ao lado de meu parente, que esboça um sorriso tímido ao me ver.

Depois de um tempo de conversa, passa a me incomodar o fato de apenas um leito, onde repousa uma mulher de meia idade, semblante distante, não estar com nenhum visitante. Questiono isso com meu tio, que me diz que o nome da moça é Ângela. Pelas informações que ouviu, foi deixada a própria sorte pela família, que nunca mais voltou, depois que teve um AVC.

Abandonada em um leito de hospital, Ângela dependia da bondade de enfermeiras e acompanhantes para comprar-lhe as fraldas geriátricas que tanto necessitava em seu estado ou mesmo para virá-la de um lado para outro, a fim de evitar as malditas escaras. Deitada, imóvel, naquela cama, tal um anjo de asas quebradas, parecia que apenas os olhos permaneciam vivos. Uma história de vida, aparentemente, limitada a um prontuário médico.

Fico me interrogando se Ângela ainda sonha? Se relembra uma antiga paixão, se aqueles olhos já irradiaram desejos. Me questiono se ainda saudade naquele peito esquecido, se ela consegue mesmo lembrar de uma bonita paisagem? Muitas perguntas passam pela minha mente, nos poucos minutos em que tento disfarçar meu assombro, minha revolta.

Tenho vontade de gritar a minha indignação, de perguntar aos funcionários do hospital se sabem o paradeiro dos filhos, se eles realmente fizeram todo o possível para encontrar um familiar, mas o peso do infinito me sobrevém, como ocorre a um menino encabulado ao ser advertido, sustento minha revolta e a converto em covardia, uma covardia doce que se confunde com sorriso. Mais um ou dois assuntos e a visita acaba, algumas despedidas e seguimos todos, com uma falsa pretensão de dever cumprido.

Antes de cruzar a porta resolvo (por que não?) olhar uma última vez para Ângela, um olhar apressado, como quem está em uma procissão e não pode parar para não interromper o fluxo, um olhar rápido, mas que permite perceber uma lágrima escorrendo dos olhos daquela triste paciente, uma lágrima de despedida.

Saio do hospital e faço um pedido em forma de uma pequena oração: peço que Ângela possa voltar a sorrir, que aqueles olhos possam enxergar a mais bela flor e tenham vontade plena de sorrir. Quero muito, neste momento em que escrevo esta crônica, que aquele anjo possa se libertar, ganhar novas asas e voar por aí, ultrapassar as fronteiras que a separam da liberdade.